São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OS RISCOS GLOBAIS

"O tempora, o mores!" (Ó tempos, ó costumes!). Com esse célebre lamento, Cícero traduziu em poucas palavras um sentimento que sempre acompanhou a humanidade: o de que as coisas estão continuamente piorando, de que, num passado nem tão remoto, tudo era melhor.
Em termos rigorosamente objetivos, a tese é falsa. No passado vivia-se muito menos e pior. O homem de Neanderthal não durava mais do que 29 anos. Em 1750, a expectativa de vida era de 35 anos. Hoje, nos países desenvolvidos, as pessoas vivem em média mais de 75 anos.
Esses avanços, evidentemente, não devem turvar a visão para as terríveis mazelas que ainda torturam a humanidade. Das guerras que não poupam nem crianças ao caos econômico e social que eclode de tempos em tempos em várias regiões do planeta, a capacidade do homem de fazer mal a seus semelhantes também cresceu histórica e exponencialmente.
O que causa uma certa surpresa é que o discurso do tudo piorou persiste mesmo em períodos de relativa tranquilidade e prosperidade. O paradoxo teria, assim, raízes psicológicas. Uma hipótese para explicar o fenômeno é a de que a percepção de mudanças que cada um tem não segue a mesma rota firme de estatísticas do tipo expectativa de vida. E, como o mundo não cessa de mudar, às vezes violentamente, a perda do sentimento de familiaridade com as coisas assume o timbre de um lamento como em "o tempora, o mores!".
Eventos como o 11 de setembro, que atingem no âmago a imagem e a auto-imagem da maior potência do planeta, desintegram referências até então tidas como imutáveis. Os EUA passaram por duas guerras mundiais sem sofrer ataques em seu território continental. Pensava-se que a América era uma fortaleza inexpugnável. Essa certeza ruiu em poucas horas com o World Trade Center.
Mesmo temores que se acreditavam do passado, como o espectro da guerra nuclear, podem retornar, como ocorre agora com a intensificação do conflito Índia-Paquistão.
Se é exata a idéia de que a percepção de deterioração está ligada à perda de familiaridade com as coisas, é possível que a sensação de piora seja um sintoma de que o mundo se tornou um lugar bem mais complexo e difícil de entender.
De fato, pelo menos parte dos atuais "infortúnios" da humanidade tem a ver com o ritmo frenético com que velhas instituições se revelam caducas, mas ainda não foram substituídas por outras que pelo menos pareçam capazes de oferecer respostas. Durante a Guerra Fria, por exemplo, havia um sistema de equilíbrio entre as duas potências que dava a sensação de que o mundo fazia parte de um esquema conhecido. Agora que esse mundo desapareceu e suas instituições se mostram obsoletas, fica reforçada a noção de que os principais eventos no planeta ocorrem de forma caótica e sem direção.



Texto Anterior: Editorias: NÃO É TÃO SIMPLES
Próximo Texto: São Paulo - Clóvis Rossi: Viva a diferença
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.