São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Crônica de um investimento perdido

HORACIO LAFER PIVA


Atravessa uma favela, que sabe ser parte da realidade brasileira, mas nunca imaginara estivesse ali de forma tão brutal

O homem de negócios estrangeiro acaba por se convencer, após as insistentes e bem arrumadas apresentações de empresários e membros do governo que se escalpelaram nos últimos meses em "road shows", de que deve vir ao Brasil, para "sentir" o ambiente de negócios. Viaja em conhecida linha nacional, contando já experimentar um pouco do clima local -além de, claro, ter da companhia o melhor tratamento em seu destino. E entrar por São Paulo, a cidade mais rica da América do Sul, parece-lhe lógico e acolhedor, nesta sua primeira investida no país.
Nos minutos finais de vôo, assiste a um belo filme, em que artistas de reconhecido talento apresentam as belezas da metrópole, seu grau de desenvolvimento e suas semelhanças com as capitais desenvolvidas do mundo. Animado, prepara-se para o melhor.
Pobre dele!
Tem sua primeira surpresa ao observar, algo espantado, as carcaças de quatro aviões abandonados ao lado da pista principal, na entrada do pátio de manobras do aeroporto de Guarulhos. Aviões que não sabe se pertencem a alguma massa falida ou se envolvidos com o crime organizado, repousando sem turbinas, sujos, pneus estourados. São horríveis, aparentam desleixo e acendem um primeiro sinal amarelo de burocracia -que provavelmente os mantém ali há tanto tempo.
O MD-11 estaciona logo em seguida e o comissário informa pelo alto-falante que o desembarque será "remoto", devendo os passageiros deslocar-se, a partir dali, num ônibus. Estupefato, o viajante olha novamente para seu bilhete, como a confirmar se realmente está usando uma companhia nacional (a maior, dissera sua agência de viagens). Imagina que, se isso acontece com uma empresa que é "orgulho nacional", o que não será das outras.
Atônito, chega ao terminal e encontra uma fila assustadora, sem nenhuma racionalidade. Encontra, é verdade, um fiscal simpático e solícito, e imagina que a partir dali será uma nova impressão, o resgate da imagem construída nos encontros e no filmete a bordo.
Os carrinhos, onde estarão os carrinhos? Existiriam carrinhos? Existem, como pode perceber após dez minutos de espera, seguidos de outros cinco de luta corporal a dividir os poucos com os passageiros de quatro outros vôos que aterrissaram ao mesmo tempo.
Na esteira verifica, desconsolado, que o adesivo colocado em sua mala no embarque, anunciando prioridade, de nada vale. Ao contrário, há uma paradoxal e inversa relação entre o lugar em que sentou e a chegada da mala. Prefere acreditar que é má sorte, pobre infeliz.
Estranha a existência de um "free shop" no desembarque, fato raro no mundo, e decide dar uma olhada. Desiste ao verificar a invasão selvagem de gente e pelo temor que o assola ao ver o olhar de desejo insaciável dos seus vendedores por seus ricos dólares, já que lá não se aceita a moeda nacional.
Encara a fila para a alfândega, criando um paralelo com as férias de anos atrás, num verão na Disney, que tanto arrependimento lhe trouxeram. Caminhando como se a porta de saída fosse uma luz no fim do túnel, é escolhido para ter sua bagagem checada. Respeita o olho treinado do agente ou a escolha randômica, mas tem dificuldades para entender o que lhe diz uma senhora que não procura falar sua língua nem mostrar simpatia por sua condição de estrangeiro após uma longa viagem.
Tendo experiências anteriores em alguns aeroportos da África subsaariana, silenciosamente se deixa inspecionar, não compreendendo por que, tendo se comportado com educação, é deixado com sua mala aberta sem um cumprimento sequer. Seu único consolo é perceber que sua condição não difere muito da do turista brasileiro, já que, ao discretamente olhar para trás, enxerga a agente a espinafrar o que imagina ser um paulistano da gema.
Aliviado, procura um táxi, o que não é difícil ao ouvir os altos brados de três moças que, em balcões, disputam clientes quase a tapa. Paga seu preço e sai do aeroporto, assustado. Pouco tempo tem para se restabelecer. Após uma bela avenida, cruza um presídio. Não entende que cartão de visitas seria aquele, um presídio com suas torres a avisar, aos que aqui chegam, que há o que temer.
Ao terminar a estrada, atravessa uma favela, que sabe ser parte da realidade brasileira, mas nunca imaginara estivesse ali de forma tão brutal. E, a partir de então, é bombardeado com uma quantidade inacreditável de outdoors de péssima qualidade, muros emporcalhados, prédios decadentes.
Lembra-se de que, no encontro com dignitários do país, ouviu dizer que a indústria do turismo estaria na agenda do dia, que a violência seria matéria alavancada pela mídia e que sua presença seria recompensada pela operacionalidade de um país em desenvolvimento, de braços abertos para o mundo.
Instala-se num hotel de gabarito internacional. Visita banqueiros e empresários de dimensão global, alimenta-se em restaurantes de grande qualidade e vê lojas das grifes mais caras com grande clientela. Tudo tão contraditório quanto a guerra fiscal a que está submetido pelos Estados em busca de seu investimento.
Dias depois, decide voltar para casa. Embora convença-se de que o mercado interno é apetitoso, reflete a respeito do desafio de se instalar, tendo de cumprir um cardápio de exigências que beira uma irracional ditadura de carimbos.
Quer voltar em um ano ou dois! Avise-se, corre grande risco de encontrar as mesmas carcaças dos aviões, o mesmo desembarque, a mesma cidade que agoniza entre sua feiúra e maus-tratos.
E o esforço em trazê-lo escorrerá pelos vãos dos dedos para cair em algum outro país -menor, é verdade, com possibilidades mais conservadoras, mas atento ao investimento que alavanca empregos e progresso, ciente de seu valor e da importância em causar uma impressão honesta nos novos visitantes e que entendeu que o desafio da globalização passa por eficiência, eficácia, percepção, perspectiva e atitude.


Horacio Lafer Piva, 45, é presidente da Federação e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp/Ciesp).


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