São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

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O bê-a-bá da polícia na democracia

PAULO SÉRGIO PINHEIRO e PAULO DE MESQUITA NETO


Há um esforço de governos democráticos, chefes de polícia e lideranças da sociedade para reformar as organizações policiais

Dois problemas estão no topo da lista de prioridades na agenda política durante as campanhas eleitorais em todo o mundo: emprego decente e segurança. O terremoto que aconteceu na França, onde um candidato neofascista foi ao segundo turno das eleições presidenciais com uma campanha centrada nas ameaças do desemprego e da insegurança dos cidadãos, mostra que não estamos sozinhos.
Ainda sob o impacto dos ataques terroristas a Nova York e Washington, governantes, candidatos a postos eletivos e lideranças da sociedade civil articulam e defendem com vigor um objetivo principal: derrotar organizações criminosas e reduzir a violência que atinge de maneira crescente cidadãos de todas as classes sociais. E procuram estabelecer coalizões capazes de ganhar as eleições e levar adiante as políticas e estratégias necessárias para a realização desse objetivo, desejado por todos.
Entretanto, em muitos países, duas questões ainda não foram claramente articuladas. Primeira: o objetivo desejado é apenas prender, processar e julgar os membros de organizações criminosas? Ou é também impedir o surgimento de novas organizações? Segunda: na realização desse objetivo, os fins justificam os meios? Ou os princípios constitucionais e valores fundamentais da democracia e do Estado de Direito que governam a escolha do objetivo determinam também os meios para atingi-lo?
Não há dúvida de que a intensidade da violência e a truculência das organizações criminosas crescem em sociedades em que a democracia e o Estado de Direito são frágeis e nas quais os direitos sociais são ainda desrespeitados.
Mas, ao procurar desbaratar organizações criminosas, prender, processar e julgar seus membros, governos e polícia, frequentemente com apoio de lideranças da sociedade civil, no afã de dar respostas imediatistas a problemas estruturais, podem ficar tentados a fazer uso de meios ilegais e antidemocráticos e a desrespeitar direitos fundamentais da pessoa humana. A revista "Time", o semanário de maior circulação no mundo, em sua edição de 15 de abril de 2002, diante da captura do chefe de operações da Al Qaeda, perguntava "como nós faremos com que ele fale?", considerando abertamente a opção da tortura.
A utilização de meios ilegais e antidemocráticos, como a tortura e as execuções sumárias, sob a ilusão de facilitar a prisão de um ou outro criminoso, fortalece a idéia de que os fins justificam os meios. A tolerância com a violência arbitrária fragiliza a democracia, debilita o Estado e, o que é pior, não estanca o crescimento da violência nem aumenta a segurança da população.
Há um enorme esforço por parte de governos democráticos, chefes de polícia e lideranças da sociedade civil para reformar as organizações policiais, implantar o policiamento comunitário e proteger os direitos humanos. Mas o relatório global da Human Rights Watch e o anuário da Anistia Internacional em 2002 apontam a persistência de graves problemas de violência e corrupção policial em toda a América Latina.
Maus policiais em vários países continuam a torturar. Execuções sumárias e prisões arbitrárias são instrumentos rotineiros de combate à criminalidade.
E, pior ainda, em todo o mundo, algumas autoridades, candidatos a postos eletivos e lideranças da sociedade civil parecem fazer vista grossa a essas violações de direitos, quando não as encobrem ou as apóiam. Esses candidatos podem até ter sucesso na luta contra um ou outro grupo criminoso e na disputa eleitoral, mas um fracasso rotundo está garantido na luta para impedir o surgimento de novas organizações criminosas e reduzir a violência no país, se continuarem tolerando a violência ilegal.
Nunca é demais lembrar quatro normas fundamentais que devem governar o funcionamento da polícia em democracias consolidadas -aliás, exatamente aquelas que pautam a política do governo federal no Brasil em matéria de segurança pública. São elas: a polícia deve dar prioridade máxima à prestação de serviços aos cidadãos, não aos governantes; a polícia deve ser responsabilizada perante a lei em toda e qualquer circunstância; a polícia deve proteger os direitos humanos; a polícia deve ser transparente nas suas atividades.
Essas regras tão singelas devem orientar a polícia em novas democracias, para garantir a segurança dos cidadãos. A temporada eleitoral é um momento oportuno para governantes e candidatos, em vez de apelarem para a demagogia, levarem em conta esse bê-a-bá da segurança pública em seus programas.


Paulo Sérgio Pinheiro, 58, professor titular de ciência política e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência, da USP, é secretário de Estado dos Direitos Humanos do governo federal.
Paulo de Mesquita Neto, 40, é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos da Violência e secretário-executivo do Instituto São Paulo Contra a Violência.



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