São Paulo, quarta-feira, 02 de junho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A destruição de uma biblioteca

MARCO ANTONIO VILLA

No século 7, a célebre biblioteca de Alexandria sucumbiu definitivamente após mais um incêndio. Em São Paulo, a Biblioteca Mário de Andrade não precisou de nenhum conquistador para ser destruída: bastaram os últimos dois prefeitos e a gestão de Marta Suplicy.
Hoje, a Mário de Andrade vive o momento mais grave de sua história. Abandonada pelo poder público municipal, está à mingua, sem funcionários para os serviços essenciais, raros bibliotecários -pois grande parte se aposentou nos últimos anos- e com o prédio em situação precária. A única intervenção do governo municipal foi a realização de uma pequena obra na praça Dom José Gaspar, meramente decorativa -tanto que o monumento em homenagem ao poeta simbolista Cruz e Souza, destruído desde 2002, continua jogado no jardim que cerca a praça.
Porém o prédio que reúne o acervo de mais de 300 mil livros -grande parte doada, apesar de hoje não existir nenhum setor para receber bibliotecas- continuou intocado.


A Mário de Andrade vive o momento mais grave de sua história. Abandonada pelo poder público municipal, está à mingua


A crise da biblioteca vem desde a gestão Paulo Maluf. Depois de uma grande reforma no final do governo Luiza Erundina, o prédio foi reinaugurado às pressas, no final de 1992, pouco antes da eleição municipal. Para Maluf, nunca uma biblioteca foi prioridade, muito menos a Mário de Andrade. Durante sua administração foram transferidos para lá muitos funcionários da Secretaria da Saúde que não aderiram ao PAS. De uma hora para outra, atendentes, auxiliares de enfermaria, funcionários burocráticos dos hospitais foram transferidos para um ambiente distinto: em vez dos doentes, tinham de cuidar dos livros.
Os serviços da biblioteca continuaram funcionando precariamente e não foi comprado sequer um livro para o acervo. Nos quatro anos seguintes, os problemas foram se agravando: o acervo continuava desatualizado e necessitando de conservação, os equipamentos estavam deteriorados, as vagas dos aposentados não foram preenchidas, o prédio, devido à pressa na entrega da reforma, apresentava graves problemas hidráulicos e elétricos.
Esperava-se que, na administração do PT, tudo fosse mudar. Doce ilusão. Um dos primeiros atos do então secretário da Cultura, Marco Aurélio Garcia, por incrível que pareça, foi a proposta de fechar a biblioteca, o que não ocorreu graças à mobilização dos funcionários, que realizaram um "abraço ao prédio". Acreditava-se que tudo não tivesse passado de um engano do secretário, que desconhecia a riqueza do acervo da biblioteca, por não ser um consulente daquele espaço. Mas, se não havia recursos para manter a biblioteca, havia para fundar o Colégio de São Paulo, à semelhança do Colégio de França, criado por Francisco 1º, tendo como local a própria biblioteca. Puro marketing para imortalizar a prefeita como uma protetora das artes, uma Catarina 2ª tupiniquim, infelizmente sem um Diderot.
Contudo a atividade-fim da biblioteca, o atendimento dos consulentes, foi, apesar dos esforços dos funcionários, piorando a cada dia, pela absoluta falta de recursos. Em 2004, a situação chegou a um ponto intolerável. O setor de cabines, reservado aos pesquisadores, que funcionava sofregamente, foi simplesmente fechado. Logo em seguida mais uma péssima notícia: o setor de livros raros, que só abria no período da tarde, também foi fechado. Para quem não conhece, o setor de raros tem um importante acervo e, dependendo da área, é indispensável para inúmeros pesquisadores nacionais e estrangeiros.
Mas a lista de problemas continua: as máquinas leitoras de microfilmes vivem quebradas; quando funcionam não podem tirar cópias, pois falta papel ou falta toner. O acervo até hoje não foi informatizado e nem sequer existem banheiros abertos para o público em quantidade suficiente. Devido à ausência generalizada de funcionários, o horário de todos os setores que ainda funcionam deve ser reduzido, indo na contramão das políticas de bibliotecas em todo o mundo, que cada vez mais ampliam os horários de atendimento: algumas ficam abertas 24 horas. E, pior, nos três anos e meio de gestão do PT não foi comprado nem um mísero livro, o que iguala a triste marca cultural da dupla Maluf-Pitta.
Diante desse quadro, é natural que os pesquisadores tenham abandonando a biblioteca. A solução foi buscar outro local, em São Paulo ou em outro Estado -especialmente a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Todavia é inexplicável o silêncio complacente de todos aqueles que utilizaram os serviços da biblioteca e que agora assistem calados à sua destruição. Uma política emergencial de conservação e ampliação do acervo, de recebimento de doações de livros e revistas, de unificação do acervo -pois parte está em Santo Amaro-, de reposição de funcionários e pleno funcionamento de todos os setores da biblioteca antecede qualquer programa de reforma, por mais importante que seja. E mais: a Mário de Andrade tem de voltar a ser uma biblioteca de referência e de visitação pública.

Marco Antonio Villa, 48, historiador, é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Jango, um Perfil (1945-1964)" (editora Globo).


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Humberto Costa: Política de saúde bucal

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.