São Paulo, terça-feira, 02 de agosto de 2005

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Depois do lamaçal

O PT e o PSDB pretenderam representar a modernidade e em nome dela tomar conta da política brasileira. Encarnaram o atraso. Convergiram para o mesmo projeto: financismo negocista e antinacional, destinado a subordinar os interesses do trabalho e da produção às exigências da confiança financeira; política social compensatória, reduzida a adoçante para dourar a pílula do modelo econômico, e acertos corruptos entre o poder e o dinheiro, feitos para negar ao povo brasileiro o espaço político da virada econômica e social. Que o Brasil agora vire as costas para esse projeto e para as duas forças rivais que o abraçaram.
E que o leitor desesperançado reflita sobre quatro séries de iniciativas a serem tomadas por um governo que ponha fim ao ruinoso ciclo tucano-petista. Nada têm de radicais. São exequíveis com os meios à mão. Contariam com apoio amplo. Mudariam a fundo a vida dos brasileiros.
O primeiro grupo de iniciativas tem a ver com o manejo da dívida pública e portanto com o juro. Se estivéssemos na situação em que estavam a Rússia e a Argentina quando fizeram suas renegociações forçadas, não seria o fim do mundo, como demonstram aquelas experiências. Mas não estamos naquela situação. Imagina-se falsamente que ou o mercado é ativo, fixando o juro, e o governo é passivo, ou o governo é ativo, reordenando forçosamente a dívida, e o mercado é passivo, aceitando a moratória. Mais normal em situação como a nossa seria tanto o governo quanto o mercado se engajarem ativamente em jogo de pressões recíprocas. Se o novo governo anunciasse ao pequeno número de condutores do mercado financeiro que passaria a pagar a metade do que paga hoje -muito mais do que se paga em quase qualquer outro lugar-, nada aconteceria. Alguns de nossos maiores financistas o reconhecem, à boca pequena. O mercado -se é assim que se pode chamá-lo- aceitaria o mal menor.
A segunda série de medidas diz respeito à informalidade, em que penam 60% de nossos trabalhadores. Nenhum governo no Brasil, nem mesmo um governo determinado a mudar o rumo da política econômica tucano-petista, pode assegurar a criação de milhões de empregos. Pode, isso sim, tomar medidas que em pouco tempo garantiriam carteira assinada para todo mundo que trabalhe. O primeiro passo é abolir todos os encargos sobre a folha de salário (financiados os direitos por meio dos impostos gerais) e dar incentivo tributário a quem empregue e qualifique os trabalhadores mais pobres e menos adestrados. Trabalho e lei se reencontrariam no Brasil.
O terceiro grupo de ações definiria a melhora da qualidade do ensino público -uma educação de século 21 num país onde sobram energia e engenho e falta capacitação- como a prioridade suprema da política social. Isso requer mínimos de investimento por aluno e de desempenho por escola; monitoramento intenso e intervenções corretivas; ensino capacitador; apoios generosos aos alunos pobres talentosos e esforçados. Até que proliferem escolas públicas capazes de atrair a classe média, em proveito de todos.
A quarta categoria de avanços romperia os arranjos entre governantes e endinheirados. Para começar a fazê-lo, não é preciso promulgar nenhuma lei. Basta que o presidente proíba qualquer membro do governo de conversar com banqueiros e empresários sem a presença de observadores da imprensa e da sociedade civil. Luzes acesas mudam tudo.
Modesto, não? Transformador, não? Por que não?


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu


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