|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Canudos sobrevive
OTAVIO FRIAS FILHO
Canudos caiu no dia 5 de outubro,
há cem anos, "quando caíram seus
últimos combatentes, que todos morreram". Magnificada pela prosa monumental de Euclides da Cunha, a
campanha do Exército republicano
contra a insurreição de sertanejos
chefiados pelo Conselheiro converteu-se na epopéia brasileira, e que estranha epopéia...
Uma epopéia é normalmente a narrativa de um povo que se forma como
nação na guerra contra o inimigo estrangeiro. No caso da expedição dissecada em "Os Sertões", o inimigo é a
própria população ou parte substancial dela, apartada do restante não por
uma linha geográfica, como na guerra
civil americana, mas social.
Do lado dos revoltosos, outra estranheza: em vez de subverter a ordem
para substituí-la por uma nova, como
é praxe entre os revoltosos de todos os
tempos, a rebelião de Canudos pretendia, ao contrário, restaurar uma
ordem anterior, tradicional, ela sim
subvertida pela proclamação da República no Rio de Janeiro.
Revoltas populares quase sempre
têm algum estopim fiscal. Com a
emancipação dos municípios, estabelecida pela República, foi cobrado um
imposto local destinado a estruturar
as prefeituras, mas que os seguidores
de Antônio Conselheiro se recusaram
a pagar. Vem daí, seguramente, muito
do impulso anti-republicano de Canudos.
A simbologia ultrapassou de longe o
episódio tributário, insuflada desde o
início pela imprensa jacobina da capital, que acusava o partido monarquista de estar por trás da revolta. Canudos passou a condensar os paradoxos
de uma sociedade onde a força armada, como em Palmares, está voltada
para dentro, onde o "povo" recusa o
progresso.
Opressores são civilizados, oprimidos são retrógrados, a sociedade como um todo parece de cabeça para
baixo ou deformada por efeito de alguma perversão interna. O próprio livro de Euclides da Cunha é um libelo
contra essa guerra, que ele chama de
crime da nacionalidade, pois Canudos
requeria ser integrada, não suprimida.
Intoxicado, porém, pela atmosfera
intelectual da época, quando estavam
em voga as mais abstrusas e servis
teorias do "racismo científico", o autor da epopéia identifica o elemento
perverso não na estrutura econômica,
mas numa mirabolante patologia em
que a mestiçagem enfraquece as raças
"superiores", tornando-as "histéricas".
É penoso acompanhar o autor nos
malabarismos destinados a conciliar a
observação segundo a qual "o sertanejo é antes de tudo um forte" com a
parafernália das raças e sub-raças:
mais de um crítico importante já procurou mostrar que aquele é o Euclides
verdadeiro, enquanto este apenas fingia adotar as maneiras da época.
Duvidemos. De toda forma, a "naturalização" da sociedade praticada
por Euclides da Cunha capta um componente de fixidez, de inalterabilidade, de "destino", que revela a força
incrível dos mecanismos mais arraigados na sociedade. O Brasil "moderno" continua montado, cem anos depois, sobre um imenso arraial de Canudos.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|