São Paulo, quinta, 2 de outubro de 1997.



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Canudos sobrevive

OTAVIO FRIAS FILHO

Canudos caiu no dia 5 de outubro, há cem anos, "quando caíram seus últimos combatentes, que todos morreram". Magnificada pela prosa monumental de Euclides da Cunha, a campanha do Exército republicano contra a insurreição de sertanejos chefiados pelo Conselheiro converteu-se na epopéia brasileira, e que estranha epopéia...
Uma epopéia é normalmente a narrativa de um povo que se forma como nação na guerra contra o inimigo estrangeiro. No caso da expedição dissecada em "Os Sertões", o inimigo é a própria população ou parte substancial dela, apartada do restante não por uma linha geográfica, como na guerra civil americana, mas social.
Do lado dos revoltosos, outra estranheza: em vez de subverter a ordem para substituí-la por uma nova, como é praxe entre os revoltosos de todos os tempos, a rebelião de Canudos pretendia, ao contrário, restaurar uma ordem anterior, tradicional, ela sim subvertida pela proclamação da República no Rio de Janeiro.
Revoltas populares quase sempre têm algum estopim fiscal. Com a emancipação dos municípios, estabelecida pela República, foi cobrado um imposto local destinado a estruturar as prefeituras, mas que os seguidores de Antônio Conselheiro se recusaram a pagar. Vem daí, seguramente, muito do impulso anti-republicano de Canudos.
A simbologia ultrapassou de longe o episódio tributário, insuflada desde o início pela imprensa jacobina da capital, que acusava o partido monarquista de estar por trás da revolta. Canudos passou a condensar os paradoxos de uma sociedade onde a força armada, como em Palmares, está voltada para dentro, onde o "povo" recusa o progresso.
Opressores são civilizados, oprimidos são retrógrados, a sociedade como um todo parece de cabeça para baixo ou deformada por efeito de alguma perversão interna. O próprio livro de Euclides da Cunha é um libelo contra essa guerra, que ele chama de crime da nacionalidade, pois Canudos requeria ser integrada, não suprimida.
Intoxicado, porém, pela atmosfera intelectual da época, quando estavam em voga as mais abstrusas e servis teorias do "racismo científico", o autor da epopéia identifica o elemento perverso não na estrutura econômica, mas numa mirabolante patologia em que a mestiçagem enfraquece as raças "superiores", tornando-as "histéricas".
É penoso acompanhar o autor nos malabarismos destinados a conciliar a observação segundo a qual "o sertanejo é antes de tudo um forte" com a parafernália das raças e sub-raças: mais de um crítico importante já procurou mostrar que aquele é o Euclides verdadeiro, enquanto este apenas fingia adotar as maneiras da época.
Duvidemos. De toda forma, a "naturalização" da sociedade praticada por Euclides da Cunha capta um componente de fixidez, de inalterabilidade, de "destino", que revela a força incrível dos mecanismos mais arraigados na sociedade. O Brasil "moderno" continua montado, cem anos depois, sobre um imenso arraial de Canudos.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.





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