São Paulo, quarta-feira, 02 de outubro de 2002

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ANTONIO DELFIM NETTO

Antropolatria

A mais fantástica demonstração de antropolatria (culto de uma divindade que assumiu a forma humana) dos últimos e trágicos tempos foi atribuir ao "mercado" sentimentos humanos. Com a maior naturalidade, fala-se que ele está "nervoso", "excitado", "pessimista" ou "otimista". Agora sabemos, pelo ministro Malan, que ele "ignora" os fatos e é vítima da "ganância infecciosa"! Chegou-se ao exagero de dizer que ele sofre de "dissonância cognitiva". Como se sabe, esta se manifesta num indivíduo quando a sua cognição (racional ou crença) não tem plena coerência interna. O exemplo mais corriqueiro dessa "dissonância", sempre lembrado desde os anos 60, é o estado de tensão que ocorre num indivíduo fumante inveterado, mas que tem consciência de que tal vício aumenta a probabilidade de ele ser atacado por um câncer no pulmão ou de ter um fim dramático com enfisema pulmonar. A hipótese fundamental (que tem alguma base empírica) é a de que, quando um indivíduo é confrontado com uma "dissonância cognitiva", ele é motivado, através de uma miríade de expedientes, a reduzi-la para minimizar o incômodo psicológico que lhe causa.
O que seria então a "dissonância cognitiva" de que sofre esse "mercado ignorante"? Uma possibilidade é a de que os agentes vejam um país cujos "fundamentais" são adequados, mas o aumento da aversão generalizada ao risco os impediria de se aproveitarem das enormes oportunidades de arbitragem existentes, as quais lhes proporcionariam gordos lucros. Outra é a de que os agentes vejam um país com "fundamentais" inadequados, mas com grandes oportunidades de lucro e riscos correspondentes. No primeiro caso, a acomodação cognitiva poderia ser feita pela insistência com que os bons "fundamentais" reduzem o nível de risco particular do Brasil a despeito das dificuldades internacionais que criaram a "aversão" generalizada ao risco. É esse trabalho que estão tentando realizar, aparentemente com algum sucesso, o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central nos seus encontros com os bancos credores nos EUA e na Europa. O restabelecimento das linhas de crédito poderá (em condições normais de temperatura e pressão) dar-se nesse último trimestre, o que melhorará a situação do nosso financiamento externo.
Certamente isso não esgota o nosso problema. Há sérias dúvidas sobre os nossos "fundamentais" serem mesmo adequados quando se vê a extrema vulnerabilidade externa criada na octaetéride que agora termina sem muita luminosidade. Um país que recorreu ao Fundo Monetário Internacional três vezes em quatro anos para manter a sua liquidez e a sua solvabilidade não pode, positivamente, invocar que executou política econômica virtuosa.
Os potenciais presidentes aceitaram a ajuda do FMI como um fato insuperável. É claro, entretanto, que o escolhido nas urnas terá a sua política econômica severamente condicionada pela necessidade de liberação dos restantes US$ 24 bilhões ao longo de 2003 após as auditorias trimestrais do FMI. O importante é saber qual será o seu comportamento depois de eleito -quando tiver de acertar suas contas com a terrível herança que vai receber. Esperemos que tenha grandeza e bom senso, sem os quais não terá sucesso.

Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

dep.delfimnetto@camara.gov.br



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