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ANTONIO DELFIM NETTO
Antropolatria
A mais fantástica demonstração de antropolatria (culto de
uma divindade que assumiu a forma
humana) dos últimos e trágicos tempos foi atribuir ao "mercado" sentimentos humanos. Com a maior naturalidade, fala-se que ele está "nervoso", "excitado", "pessimista" ou "otimista". Agora sabemos, pelo ministro
Malan, que ele "ignora" os fatos e é vítima da "ganância infecciosa"! Chegou-se ao exagero de dizer que ele sofre de "dissonância cognitiva". Como
se sabe, esta se manifesta num indivíduo quando a sua cognição (racional
ou crença) não tem plena coerência
interna. O exemplo mais corriqueiro
dessa "dissonância", sempre lembrado desde os anos 60, é o estado de tensão que ocorre num indivíduo fumante inveterado, mas que tem consciência de que tal vício aumenta a probabilidade de ele ser atacado por um câncer no pulmão ou de ter um fim dramático com enfisema pulmonar. A hipótese fundamental (que tem alguma
base empírica) é a de que, quando um
indivíduo é confrontado com uma
"dissonância cognitiva", ele é motivado, através de uma miríade de expedientes, a reduzi-la para minimizar o
incômodo psicológico que lhe causa.
O que seria então a "dissonância
cognitiva" de que sofre esse "mercado
ignorante"? Uma possibilidade é a de
que os agentes vejam um país cujos
"fundamentais" são adequados, mas
o aumento da aversão generalizada ao
risco os impediria de se aproveitarem
das enormes oportunidades de arbitragem existentes, as quais lhes proporcionariam gordos lucros. Outra é a
de que os agentes vejam um país com
"fundamentais" inadequados, mas
com grandes oportunidades de lucro e
riscos correspondentes. No primeiro
caso, a acomodação cognitiva poderia
ser feita pela insistência com que os
bons "fundamentais" reduzem o nível
de risco particular do Brasil a despeito
das dificuldades internacionais que
criaram a "aversão" generalizada ao
risco. É esse trabalho que estão tentando realizar, aparentemente com algum sucesso, o ministro da Fazenda e
o presidente do Banco Central nos
seus encontros com os bancos credores nos EUA e na Europa. O restabelecimento das linhas de crédito poderá
(em condições normais de temperatura e pressão) dar-se nesse último trimestre, o que melhorará a situação do
nosso financiamento externo.
Certamente isso não esgota o nosso
problema. Há sérias dúvidas sobre os
nossos "fundamentais" serem mesmo
adequados quando se vê a extrema
vulnerabilidade externa criada na octaetéride que agora termina sem muita luminosidade. Um país que recorreu ao Fundo Monetário Internacional três vezes em quatro anos para
manter a sua liquidez e a sua solvabilidade não pode, positivamente, invocar que executou política econômica
virtuosa.
Os potenciais presidentes aceitaram
a ajuda do FMI como um fato insuperável. É claro, entretanto, que o escolhido nas urnas terá a sua política econômica severamente condicionada
pela necessidade de liberação dos restantes US$ 24 bilhões ao longo de 2003
após as auditorias trimestrais do FMI.
O importante é saber qual será o seu
comportamento depois de eleito
-quando tiver de acertar suas contas
com a terrível herança que vai receber.
Esperemos que tenha grandeza e bom
senso, sem os quais não terá sucesso.
Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras
nesta coluna.
dep.delfimnetto@camara.gov.br
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