São Paulo, Terça-feira, 02 de Novembro de 1999
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TENDÊNCIAS/DEBATES

A teoria e a prática

LUIZ EDUARDO MELIN

"Não há nada mais prático do que uma boa teoria."0Kurt Lewin

O debate público brasileiro em matéria econômica ficou ainda mais divertido ao longo deste ano, ao menos para os apreciadores do humor "nonsense".
Isso fica patente nas previsões catastroficamente equivocadas feitas logo após a mudança do regime cambial, tanto pelas viúvas do câmbio fixo como, menos compreensivelmente, por muitos dos que vinham de longa data combatendo esse regime. Ou ainda nos radicalismos gritadores que nos ameaçam com o caos e a perdição caso não se declare uma moratória "soberana" externa e interna para fechar o país numa autarcia ou caso não se o escancare numa mercearia global.
Mas o mais divertido mesmo é o contraste entre a retórica neoliberal oficial e o pragmatismo macroeconômico adotado pelo governo desde o início do ano. A oposição, indignada, parece acreditar que o governo faz o que diz e produz verdadeiras pérolas com o intuito de mudar uma política que o governo, afinal, não segue.
Os defensores da linha oficial do governo continuam a insistir nos discursos do "ajuste fiscal" e das "reformas" como o único caminho a seguir para o "desenvolvimento com estabilidade" (antes era para a "preservação do real"). Esses discursos já não tinham nenhum fundamento quando vigia a política anterior de argentinização do Brasil e hoje se tornaram totalmente fora de propósito, já que nenhuma das ações de política econômica em curso depende dos objetivos de equilíbrio fiscal e de reforma institucional preconizados no nhenhenhém oficial.
No entanto, a "macroeconomia do lar" (termo cunhado por Kalecki e recentemente revivido por Rogério Studart) e a "macroeconomia legislativa" continuam a frequentar alegremente pronunciamentos de autoridades. Segundo esses discursos escalafobéticos:
a) a administração das contas públicas segue os mesmos princípios da administração das contas de uma família, não importando que esta não tenha o controle integral do custo de suas dívidas, como um governo tem, nem que a dívida pública nunca será liquidada como uma dívida familiar; e
b) uma vez feitas alterações no estatuto jurídico da Previdência, do funcionalismo, da propriedade e atuação das estatais, dos tributos, do sistema eleitoral etc., os problemas econômicos do Brasil -filigranas como emprego, crescimento, balanço de pagamentos, distribuição de renda- estarão resolvidos automaticamente.
Seria de esperar que a oposição estivesse com a faca e o queijo para pôr a nu a falta de fundamento e mesmo de coerência do discurso econômico oficial. Contudo o que vemos é um alegre desfile de platitudes, imprecisões e generalidades a favor do que é bom e contra "tudo o que aí está", que aumenta a confusão no debate.
Premidos a manifestarem-se com um pouco menos de vaguidão, os opositores abrem seu "saco de bondades", para de lá retirar âncoras monetárias e paridade cambial com uma cesta de moedas (na época do auge da crise), e dizem que solverão o problema do emprego com "estímulos às pequenas e médias empresas" e diminuição dos encargos trabalhistas; a questão da produção agrícola seria resolvida com uma reforma agrária "abrangente".
Há também os equivalentes econômicos do leitor de bulas, que saem por aí falando na tal da poupança interna como sendo o santo gral do crescimento. Tenham paciência: o fato de que a poupança interna se forma a partir do crescimento econômico, não sendo, então, seu pré-requisito, foi reconhecido há tempos até pelo "movimento dos sem-Serra" (nome dado por Franklin Serrano a políticos e economistas que desde a Nova República aguardam a "hora feliz, sempre adiada", como diria Vicente de Carvalho, em que José Serra será chamado a encabeçar um superministério da Economia).
Diante disso, não admira que um governador de oposição tenha se confundido e declarado que a "teoria do governo é boa, mas a prática é ruim". Não admira que a população tenha reeleito esse lamentável governo cuja irresponsabilidade social só encontra equivalência em sua temeridade institucional. Certamente o povo não votou pela ideologia esdrúxula dos iluminados do real, que a realidade forçaria a rever pouco depois da eleição. Votou por uma inflação sob controle e é só.

Vemos um alegre desfile de platitudes a favor do que é bom e contra "tudo o que aí está"
Onde está o erro? As oposições estão fazendo um trabalho político admirável de mobilização e conscientização da sociedade quanto aos malefícios da "política de desconstrução nacional" do atual governo e da perpetuação das desigualdades no país. Mas o discurso econômico tem de ser aprimorado. E logo: se continuar esperando chegar ao poder para fazê-lo, essa poderá ser mais uma "hora sempre adiada".
Pois à margem do debate e por sobre a inânia das declarações oficiais, o fato é que o governo vem fazendo uma gestão macroeconômica competente, administrando os dois principais preços da economia com intervenções eficazes e oportunas no mercado de câmbio e com um trabalho consistente visando à queda continuada das taxas de juros. Não se enganem: isso resultará numa visível melhoria dos indicadores de conjuntura a partir do ano que vem.
Os opositores da linha oficial têm de estar prontos para confrontar esse fato. Devem esclarecer à sociedade que o pragmatismo não aprisiona e que a política econômica de um país como o Brasil não se resume a uma gestão das variáveis macro, além de apontar com clareza as medidas práticas necessárias para produzir melhorias estruturais no crescimento e no emprego, e não meras "bolhas". Do contrário o nexo do debate econômico continuará mais duvidoso que o PPA, deixando o governo mais uma vez numa ótima posição para afirmar que estava certo todo o tempo em seu discurso de ajustes e reformas e para convencer os mais incautos da perigosa falácia de que a teoria, na prática, é outra.


Luiz Eduardo Melin, 37, economista e cientista político, é professor do Departamento de Direito da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro.




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