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São Paulo, segunda-feira, 03 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula, a utopia realista

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS


O que verdadeiramente distingue Lula é a troca da ideologia pela ética, enquanto registro da confrontação política



Compete ao governo criar sustentabilidade para as mediações, sem as quais a era Lula não apresentará uma identidade própria


Não é a primeira vez que, no último meio século, políticos de esquerda chegam ao poder por via democrática no continente latino-americano. No próprio Brasil, João Goulart (1961-1964), no Chile, Salvador Allende (1970-1973), e atualmente na Venezuela, Hugo Chávez. Os dois primeiros casos terminaram violentamente em ditaduras, e o terceiro está à beira do colapso. Em todos os casos, a interferência dos Estados Unidos foi importante.
Faz, pois, todo o sentido perguntar o que distingue Lula dos casos anteriores e nos faz crer que o seu destino será diferente. Mesmo sabendo que as condições são sempre diferentes e que a história não se repete, o que está em causa não é o destino específico dessa exaltante experiência política, mas antes a análise dos seus fatores de êxito. Para além de muitos outros fatores, como a densidade política do PT, a consolidação democrática e o carisma de Lula, o que verdadeiramente distingue o presidente petista é a substituição da ideologia pela ética, enquanto registro da confrontação política.
Em vez do socialismo ou da revolução bolivariana, a honestidade e a transparência do governo, a solidariedade para com os mais fracos, a luta contra a fome e a pobreza. Essa reconfiguração ética do seu programa abriu espaço para os dois grandes fatores de seu êxito: no plano interno, a construção de alianças amplas e a redução da rejeição; no plano externo, a credibilidade de seu propósito de respeitar os compromissos financeiros do país, utilizando a mínima margem de manobra para realizar políticas sociais, uma posição algo semelhante à mais recente do FMI.
O primeiro fator permitiu-lhe ser hoje um dos políticos eleitos com maior número de votos na história da democracia. O segundo fez com que investidores e credores estrangeiros passassem da hostilidade à neutralidade armada.
Esses fatores parecem fazer assentar a diferença de Lula no seu realismo. Mas, assim sendo, onde está a utopia? Qual é o significado político real do ex-operário a subir a rampa do Palácio do Planalto? A questão básica é saber se, e em que medida, o governo de Lula conseguirá alterar as estruturas de poder social que transformaram o Brasil num dos mais injustos países do mundo. Uma resposta positiva a essa questão depende, em meu entender, de uma série de condições exigentes. Passo a mencionar as principais.
A primeira é que o governo de Lula capitalize nas melhores práticas políticas de que o PT foi protagonista nos últimos dez anos. Entre essas práticas, destacam-se as experiências de democracia participativa, sob a forma do Orçamento Participativo, na gestão de mais de cem cidades do Brasil. O PT obteve seu êxito por ter sido sempre um partido-movimento e não pode deixar de sê-lo pelo fato de ser governo. O PT, que inventou o Orçamento Participativo, deverá inventar outras formas de democracia participativa adequadas aos diferentes níveis e setores da governança. Ou seja, sem a reforma democrática do Estado, é pouco crível que qualquer outra reforma tenha êxito.
Essa condição está relacionada com a segunda: a gestão sábia e democrática das frustrações. A eleição de Lula aumentou exponencialmente a discrepância entre as experiências atuais da grande maioria dos brasileiros e as expectativas quanto às melhorias que poderão decorrer do seu governo. Tal discrepância redundará em frustração que só será funcional para o governo de Lula se for assumida democraticamente, ou seja, se o governo Lula for solidário mesmo na formulação da impossibilidade de o ser.
A esse respeito, há um paralelo perturbador entre o Brasil de hoje e a África do Sul de dez anos atrás. Em ambos os países, o simbolismo da subversão democrática atingiu o paroxismo: num caso, um negro a chegar ao poder, no outro, um operário. Tal como Lula, Mandela escolheu para as áreas econômicas do governo gente credível ante "os mercados", deixando as áreas sociais a cargo de políticos mais à esquerda. Não tendo sido estabelecidas mediações entre as duas áreas, os setores sociais acabaram por definhar ante a necessidade de abrir o país aos imperativos neoliberais, colocando a grande central sindical, a Cosatu, afeta ao partido do governo (o ANC), numa posição de impasse que dura até hoje.
A situação brasileira é felizmente distinta, não só porque a mediação está criada pelo forte investimento político no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social mas também porque a abertura ao neoliberalismo foi feita antes e zelosamente pelos governos de FHC. De qualquer modo, as dificuldades que se avizinham terão de ser parte da democracia e não o limite desta.
A terceira condição reside em o Brasil deixar de se ver como demasiado grande e passar a ver-se como demasiado pequeno, pelo menos na sua capacidade para resistir à globalização neoliberal. Essa miniaturização criará a energia para duas globalizações regionais alternativas. A primeira é continental: o Mercosul. É sabido que a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) transformará o Brasil numa imensa maquiladora, como acontece no México (e sem ter o benefício da emigração à mão).
A Alca inviabiliza a idéia do novo contrato social proposta pelo presidente Lula. Não será fácil resistir à imposição da Alca -será impossível sem uma alternativa consistente. O Mercosul é a instância que confere credibilidade à idéia da aproximação ao capitalismo social-democrático da Europa, ou seja, à combinação de elevada competitividade com elevada proteção social mediante uma regulação pública ativa. A desglobalização só faz sentido enquanto proposta de reglobalização alternativa.
O êxito dessa globalização regional dependerá em parte da própria União Européia e de sua capacidade para abandonar a hipocrisia de querer ser uma alternativa global aos EUA, sem, contudo, confrontá-los fora da Europa.
A outra forma de globalização regional alternativa é transcontinental e diz respeito à articulação política com outros países de desenvolvimento intermediário, como a Índia, a China e a África do Sul. Só assim será possível confrontar o super-Estado paralelo constituído pelos imperativos transnacionais do neoliberalismo. A articulação entre o Brasil e a Índia na Organização Mundial do Comércio, no que se refere à luta pela supressão dos direitos de propriedade intelectual em casos de emergência de saúde pública (como o caso da Aids), é um bom exemplo do muito que pode ser feito.
A quarta condição para que a diferença de Lula faça diferença é paradoxalmente global e nacional e exige um esforço aturado de mediação entre diferentes escalas e horizontes de transformação social. Acaba de realizar-se em Porto Alegre o Fórum Social Mundial. Não é segredo para ninguém o papel do PT, dos movimentos sociais e ONGs simpatizantes no êxito do fórum. Teria sido trágico se a óbvia autonomia recíproca entre o governo Lula e o FSM tivesse degenerado numa forma de "dissonância cognitiva", quer sob a forma de um distanciamento agressivo, próximo do enjeitamento, por parte do governo do Lula, quer sob a forma da utilização do fórum, por parte de grupos esquerdistas, dentro e fora do PT, para dar cobertura internacional às críticas ao "realismo" ou "oportunismo" lulista.
A primeira atitude teria retirado a utopia ao realismo, enquanto a segunda teria retirado o realismo à utopia. Qualquer delas nos deixaria na condição estúpida de não termos aprendido nada em anos. Sobretudo, não termos aprendido que o outro mundo possível só é possível neste mundo e não noutro.
Felizmente, o exigente esforço de mediação para neutralizar qualquer dessas atitudes foi coroado de êxito. O êxito do fórum foi o primeiro e mais auspicioso augúrio da era Lula. Ao governo e ao movimento dos movimentos compete dar sustentabilidade às mediações, sem as quais a era Lula não terá identidade própria.

Boaventura de Sousa Santos, 62, sociólogo, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).


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