São Paulo, terça-feira, 03 de fevereiro de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES A luta de classes no Brasil
EMIR SADER
O aumento do desemprego, a deterioração do nível de emprego e a diminuição do poder aquisitivo do salário se deram concomitantemente ao aumento dos lucros dos bancos como expressão sintética e dramática da natureza de classe do primeiro ano de governo Lula. A reforma da Previdência e a ausência de uma reforma tributária com real poder redistributivo favoreceram essa hegemonia, por meio da qual o governo Lula enfraqueceu o movimento organizado dos trabalhadores e a dimensão pública do Estado brasileiro, buscando articular bases populares de apoio ao bloco no poder -mediante a legitimação de suas políticas por meio da simpatia dos setores mais pobres e desorganizados do povo à figura de Lula-, assentando-se, desse modo, em um arco de forças que combina o capital financeiro e a massa desorganizada. A intensificação do caráter privatizado do Estado favorece, por sua vez, o grande capital, não apenas pela expansão do mercado dos fundos privados de pensão, mas também por contribuir para a desqualificação do Estado e de sua dimensão pública. O governo Lula, ao contrário do que tenta projetar, não está à parte da polarização que opõe as classes fundamentais. De um lado estão os que lutam pela prioridade do social, constituindo o bloco popular, os que não se renderam às políticas focalizadas e assistencialistas -que podem conviver com os "superávits fiscais", já que não afetam de forma substancial a péssima distribuição de renda construída e reproduzida durante séculos no Brasil. Esses lutam pelo deslocamento da centralidade do ajuste fiscal para o atendimento dos direitos sociais e econômicos universais da população -a começar pelo direito ao emprego formal, com o objetivo do "desemprego zero". No outro pólo se situam os que priorizam o ajuste fiscal, assumem a reprodução do modelo econômico neoliberal, consolidam a hegemonia do capital especulativo e se situam como eixo do bloco conservador dominante no governo. Da mesma forma, a prioridade ao Mercosul ou à Alca estabelece uma política externa soberana ou definitivamente subordinada. Essa opção define, de fato, o alinhamento ao lado da prioridade da extensão do mercado interno de massas, isto é, do social, ou ao dos setores financeiro e exportador. Pode abrir espaço para um modelo alternativo, fortalecendo o bloco social popular, ou pode complementar no plano externo o atual modelo conservador, confirmando uma das teses clássicas da esquerda, segundo a qual a forma de inserção internacional define os marcos das políticas internas. O bloco alternativo conta com o apoio do movimento social organizado, com a militância descontente dos partidos de esquerda e com grande parte da intelectualidade crítica. O bloco dominante conta com as políticas até aqui hegemônicas no governo, com a grande maioria da mídia, com o apoio dos organismos financeiros e comerciais internacionais e com a legitimidade junto à massa desorganizada da população. Sinteticamente, podemos projetar três evoluções futuras: a primeira, a manutenção dessas forças e a consolidação do governo como um bonapartismo conservador, que administra a crise atual e consolida a hegemonia do capital especulativo; a segunda, a conquista pelo movimento social organizado de parte substancial dos setores populares até aqui não-organizados, esvaziando o governo de apoio social significativo e gerando uma crise de legitimidade; a terceira, como desdobramento da segunda, a mudança de caráter do governo, aderindo à alternativa popular e gerando uma mudança de hegemonia no seu interior e na sociedade brasileira. De qualquer forma, o certo é que a história, mudando sempre sua forma, continua a ser a história da luta de classes. Os partidos, os governos, as forças sociais e culturais mudam, transformam sua natureza de classe, mas sempre se definem pelo seu alinhamento em relação aos grandes interesses do capital ou do trabalho. O período histórico atual não é exceção, por maior que seja o ineditismo de sua forma; da mesma maneira que seu desfecho, aberto, dependente dos desdobramentos da relação de forças entre os blocos sociais antagônicos, é que definirá a cara do Brasil no século 21: dominado pelas forças do capital ou do trabalho, pela ínfima minoria no poder ou pelas grandes massas da população, organizadas como cidadãos livres e soberanos. Emir Sader, 60, é professor de sociologia da USP e da Uerj, onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas. É autor de "A Vingança da História" (Boitempo Editorial), entre outros livros. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Frei Betto: Assim é a política Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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