UOL




São Paulo, segunda-feira, 03 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BORIS FAUSTO

O mundo de ponta-cabeça

Na semana passada, morreu um dos maiores historiadores contemporâneos -o professor Christopher Hill, autor de livros notáveis sobre sociedade, religiões e sistema político no século 17 inglês.
Diante dessa morte lamentável, um título das obras de Hill me voltou à mente: "O Mundo de Ponta-Cabeça" ("The World is Upside Down"); não porque estivesse preocupado com um passado distante, mas porque esse título lembra a cena internacional dos dias de hoje.
A analogia é relativa, mas faz sentido, podendo-se tomar como referência a guerra anunciada do Iraque, pois o comportamento dos governos de alguns países, em meio às tensões reinantes, gerou alinhamentos internos inesperados.
Tomemos os casos da Inglaterra e da França. A política de estrito alinhamento de Tony Blair ao governo Bush produziu um inconformismo no Partido Trabalhista cujo alcance poderá se ampliar. Na Câmara dos Comuns, 122 dos 410 deputados trabalhistas endossaram uma declaração contrária à participação em uma guerra, assinalando que "as condições necessárias para uma ação militar ainda não estão comprovadas". Em contrapartida, 160 deputados do Partido Conservador votaram a favor de uma moção governamental que pressupõe, de um modo ou de outro, o desencadeamento do conflito.
No caso da França, ocorre o inverso. O comportamento reticente do governo Chirac, no que se refere ao apoio à guerra, vem provocando descontentamento em parlamentares importantes da governista União para a Maioria Presidencial (UMP). Enquanto isso, todos os partidos de esquerda representados na Assembléia Nacional apóiam a posição da França na ONU e incentivam Chirac a usar o direito de veto no Conselho de Segurança, caso isso se faça necessário.
Quando olhamos o quadro dos países europeus que apóiam a ação americana no Iraque, constatamos uma reversão do quadro da guerra fria. Os países do leste da Europa -com a importante exceção da Rússia-, ansiosos por mostrar bom comportamento e sobretudo ansiosos pela ajuda americana, declararam seu apoio sem nuances às iniciativas do governo Bush, contrastando com a atitude da França e da Alemanha, entre outros países do ocidente europeu.
Desse modo, a aliança atlântica, que tinha como pressuposto proteger os países da Europa ocidental da ameaça soviética, perde sentido, e os Estados Unidos ganham inesperados aliados -os peixes pequenos, como se diz no Pentágono-, ainda que muitas vezes eles sejam objeto de pesadas ironias, seja por seu tenebroso passado stalinista, seja pela subserviência canina, ontem à União Soviética e hoje aos Estados Unidos.
As reviravoltas parecem surpreender não apenas os analistas e o grande público. Ao que tudo indica, Blair e José Maria Aznar - primeiro-ministro espanhol- embarcaram em uma canoa furada. O apoio sem restrições à política americana, que aparentemente estaria na lógica dos fatos, choca-se com a opinião pública majoritária de seus respectivos países e está erodindo a até aqui inabalável popularidade de ambos. Tonturas provocadas por um mundo de ponta-cabeça?.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: 03.03.03
Próximo Texto: Frases

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.