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BORIS FAUSTO
O mundo de ponta-cabeça
Na semana passada, morreu um
dos maiores historiadores contemporâneos -o professor Christopher Hill, autor de livros notáveis sobre sociedade, religiões e sistema político no século 17 inglês.
Diante dessa morte lamentável, um
título das obras de Hill me voltou à
mente: "O Mundo de Ponta-Cabeça"
("The World is Upside Down"); não
porque estivesse preocupado com um
passado distante, mas porque esse título lembra a cena internacional dos
dias de hoje.
A analogia é relativa, mas faz sentido, podendo-se tomar como referência a guerra anunciada do Iraque, pois
o comportamento dos governos de alguns países, em meio às tensões reinantes, gerou alinhamentos internos
inesperados.
Tomemos os casos da Inglaterra e da
França. A política de estrito alinhamento de Tony Blair ao governo Bush
produziu um inconformismo no Partido Trabalhista cujo alcance poderá
se ampliar. Na Câmara dos Comuns,
122 dos 410 deputados trabalhistas endossaram uma declaração contrária à
participação em uma guerra, assinalando que "as condições necessárias
para uma ação militar ainda não estão
comprovadas". Em contrapartida, 160
deputados do Partido Conservador
votaram a favor de uma moção governamental que pressupõe, de um modo ou de outro, o desencadeamento
do conflito.
No caso da França, ocorre o inverso.
O comportamento reticente do governo Chirac, no que se refere ao apoio à
guerra, vem provocando descontentamento em parlamentares importantes
da governista União para a Maioria
Presidencial (UMP). Enquanto isso,
todos os partidos de esquerda representados na Assembléia Nacional
apóiam a posição da França na ONU e
incentivam Chirac a usar o direito de
veto no Conselho de Segurança, caso
isso se faça necessário.
Quando olhamos o quadro dos países europeus que apóiam a ação americana no Iraque, constatamos uma
reversão do quadro da guerra fria. Os
países do leste da Europa -com a importante exceção da Rússia-, ansiosos por mostrar bom comportamento
e sobretudo ansiosos pela ajuda americana, declararam seu apoio sem
nuances às iniciativas do governo
Bush, contrastando com a atitude da
França e da Alemanha, entre outros
países do ocidente europeu.
Desse modo, a aliança atlântica, que
tinha como pressuposto proteger os
países da Europa ocidental da ameaça
soviética, perde sentido, e os Estados
Unidos ganham inesperados aliados
-os peixes pequenos, como se diz no
Pentágono-, ainda que muitas vezes
eles sejam objeto de pesadas ironias,
seja por seu tenebroso passado stalinista, seja pela subserviência canina,
ontem à União Soviética e hoje aos Estados Unidos.
As reviravoltas parecem surpreender não apenas os analistas e o grande
público. Ao que tudo indica, Blair e José Maria Aznar - primeiro-ministro
espanhol- embarcaram em uma canoa furada. O apoio sem restrições à
política americana, que aparentemente estaria na lógica dos fatos, choca-se
com a opinião pública majoritária de
seus respectivos países e está erodindo
a até aqui inabalável popularidade de
ambos. Tonturas provocadas por um
mundo de ponta-cabeça?.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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