São Paulo, quarta-feira, 03 de março de 2004

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ANTONIO DELFIM NETTO

De novo, o boato

Temos hoje a cara completa de 2003, o primeiro ano do governo Lula. O resultado econômico foi medíocre: o PIB teve variação negativa de 0,2%. O saldo político foi exuberante: a passagem elegante, tranqüila e civilizada de Fernando Henrique Cardoso para Luiz Inácio Lula da Silva, de uma administração que se pensava "social-democrata" para uma administração que se pensa "socialista", elevou o conceito do Brasil. Somos agora vistos como uma república democrática, que se preocupa com a pobreza e luta pela igualdade e pela liberdade de seus cidadãos e cujas instituições funcionam com normalidade dentro de disposições constitucionais, regime hoje hegemônico no mundo. A segurança com que foi feita a transferência de governo e a atuação do que se supunha um governo "radical" deram nova dimensão política ao país. É uma pena que isso ainda não seja percebido internamente.
Estamos aprendendo a manipular corretamente as instituições e a controlar o tumulto passional que freqüentemente nos envolve. Ainda agora se tenta transformar um lamentável caso de polícia numa grave questão institucional! Insiste-se em criar CPIs, como se elas fossem um instrumento de perquirição da "verdade", quando todos sabemos que geralmente são instrumentos das paixões mais inconfessáveis, eficazes apenas para destruir reputações. Algumas pobres personalidades do Congresso fizeram seu nome como freqüentadoras ubíquas de todas as CPIs! Notáveis a esse respeito são exatamente alguns petistas. Isso para não falar nos que se fantasiam, durante o processo, de Sherlock Holmes, Dick Tracy ou "X-9"...
O mal desse arrebatamento "moral", que estranhamente só existe nos partidos quando estão na oposição, é que ele ajuda a aumentar a volatilidade da economia, que é o pasto ideal onde se fartam, em poucas horas, os espertos (e necessários) especuladores. A sexta-feira 13/2 revelou bem isso. Navegando na internet na noite anterior, descobriu-se que uma revista semanal anteciparia a sua edição (o que dá o sinal da importância), revelando um pecado capital de um funcionário da Casa Civil. Isso foi o bastante para que, na primeira hora de expediente, a Bovespa revelasse uma queda de 4%. Na segunda hora, uma recuperação de 3% e, no fechamento, um aumento de 1,8% em relação ao do dia anterior. Uma flutuação de 6,2% num único dia! O mesmo movimento se verificou na cotação do dólar/real. O chamado "risco Brasil" flutuou 7,5% ao longo do dia, terminando abaixo do estabelecido no dia anterior.
A notícia foi, certamente, a causa eficiente. Mas o comportamento ao longo do dia mostra como opera a "lei do boato". O assunto envolvia a Casa Civil. Em princípio, portanto, era da maior importância. A "solução" não era demitir e processar o funcionário (o que foi feito imediatamente), mas o seu chefe, o que envolvia grande ignorância de como funciona o governo. As duas condições para que o "boato" se propague à velocidade da luz estavam dadas. Isso produziu um grande sobressalto na economia brasileira na manhã do dia 13/2.
A tranqüilidade só foi recuperada quando o presidente Lula (com o ar de quem não queria nada) desmontou o boato e garantiu a apuração policial do delito, reafirmando sua credibilidade.


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

dep.delfimnetto@camara.gov.br


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