São Paulo, quarta-feira, 03 de março de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Nestlé sem Garoto
AFONSO A. DE MELLO FRANCO NETO,
Transformar processo técnico complexo -análise dos custos e benefícios sociais de uma concentração econômica- em conversa de palanque não é indicador de responsabilidade e consciência dos valores em jogo. Vale arrolar algumas razões do Cade, mesmo sem adentrar no seu mérito: 1) É a primeira grande operação (rivalizada apenas pelo caso Ambev) não aprovada. Esse fato, quase corriqueiro nos EUA, Canadá e Europa, mas ainda raro no Brasil, marca o sentido da defesa da concorrência no país. Afinal, havia quem acreditasse que questões concorrenciais devessem ser resolvidas politicamente. 2) Vê-se no voto do conselheiro Thompson Andrade metodologia de análise sintonizada com procedimentos usuais em países com tradição de defesa da concorrência. A justificação não é garantia contra o erro, pois este ocorre mesmo sob controle das variáveis relevantes para a questão. Contudo a fundamentação técnica e pública é garantia de transparência e seriedade. A descrição dos fatores considerados para a comparação entre benefícios e custos da concentração indica, sem prejuízo das opiniões em contrário, que a decisão do Cade está ancorada em argumentos e evidências rigorosos. Os que acompanharam as últimas decisões não estão surpresos com os critérios adotados, coerentes com julgamentos recentes. Crítica à decisão, sem fatos que definam vantagens e desvantagens, para a sociedade, de uma posição alternativa, revela-se ingênua. A decisão do Cade não está baseada em demagogia ou política. Esta é uma vitória para a concorrência e para a defesa do consumidor no Brasil. 3) Casos de repercussão divulgam os desenvolvimentos da cultura da concorrência no Brasil. No caso específico, lembremos que o Cade tomou providências para tornar plausível a decisão. Preliminarmente, celebrou com a Nestlé um Apro (Acordo de Preservação de Reversibilidade da Operação), a fim de garantir a desconstituição da operação. Assim, evitaram-se riscos da política do "fato consumado" e do congelamento absoluto da operação, com injustificáveis custos. 4) A demora no julgamento merece comentários. Decisões complexas como a que tomou o Cade demoram em qualquer país. Melhorar as condições de trabalho, com a contratação de pessoal qualificado, bem como a adoção do sistema de notificação prévia das operações de fusão são medidas necessárias para maior celeridade das decisões. A economia de mercado é interpretada com dificuldade pelo sistema político. Se a política não for capaz de autolimitar suas intervenções sobre a economia, e vice-versa, corre-se o risco de recíproca paralisia. Sob o prisma das decisões políticas, o perigo reside na seqüência de medidas que, na tentativa de controlar um ambiente que lhe é estranho, descaracterizem a economia. Da perspectiva econômica, o risco se inverte: na busca de solução econômica para questões políticas, a desfiguração incide sobre o sistema político. Não há sincronia, hierarquia ou identidade temporal e espacial entre os dois sistemas. Sem percepção dessas diferenças e com desrespeito aos limites de cada âmbito -tentações nos países em desenvolvimento-, aprofundaremos nossa condição periférica. Para o bem das instituições políticas e a saúde da economia, seria fundamental que o caso Nestlé/Garoto não fosse alçado à condição política. Entre livre iniciativa e livre concorrência há relação de interdependência. Uma não pode ser contraposta à outra, porque ambas derivam do mesmo direito fundamental, a liberdade. As liberdades econômicas não fazem sentido isoladamente. São limitadas por duplo viés: de um lado, uma impõe amarras à outra; de outro, cada uma dessas liberdades deve conviver com idêntica liberdade dos demais titulares desse direito fundamental. A livre iniciativa não pode sufocar a livre concorrência. Por isso, a livre concorrência é entendida como aplicação concreta da livre iniciativa, jamais sua negação. Afirmar que a decisão do Cade é inconstitucional é um rematado absurdo. Este é o momento de as altas autoridades afetas à matéria darem um basta nos ataques grosseiros ao sistema brasileiro de defesa da concorrência, prestigiá-lo e fazerem uma defesa do respeito à lei, à Constituição e à concorrência. O contrário é misturar política, direito e economia, como nas ditaduras ou nas Repúblicas bananeiras. Afonso Arinos de Mello Franco Neto, 43, é professor de economia da Escola de Pós-Graduação em Economia da FGV-RJ. Celso Fernandes Campilongo, 46, é professor de direito da PUC-SP e da Faculdade de Direito da USP. Ronaldo Porto Macedo Júnior, 41, é professor de direito da Faculdade de Direito da USP e da Escola de Direito da FGV-SP. Todos foram conselheiros do Cade. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES José Genoino: A condenação moral abstrata do PT Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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