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São Paulo, sábado, 03 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O BC deve intervir na taxa de câmbio?

SIM

Liberalismo de pé quebrado

RICARDO CARNEIRO

Muito se tem discutido acerca da orientação liberal do atual governo em matéria de política econômica. A manifestação dos mais importantes formuladores dessa política, o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central, ante a recente valorização do câmbio, traduz com precisão os contornos dessa posição. A concepção segundo a qual a taxa de câmbio encontrará o seu "equilíbrio natural" (sic) pelas forças de mercado constitui equívoco de grande profundidade.
As razões para intervir na formação da taxa de câmbio em países emergentes têm por fundamento a constatação de sua maior volatilidade e amplitude de variação. Estas se devem à dupla assimetria do sistema monetário e financeiro internacionais. A primeira assimetria refere-se à natureza volátil dos fluxos de capitais que se dirigem à periferia do sistema tanto pela posição marginal que esses países ocupam nos fluxos de capitais, quanto pela natureza dos investidores que a eles se dirigem. Estes últimos, dispostos a correr mais riscos, são os que mais rapidamente mudam de opinião e posição. A segunda assimetria diz respeito à magnitude das taxas de juros, mais elevada para os países emergentes, em razão da sua posição peculiar na hierarquia das moedas do sistema monetário internacional. Taxas de juros maiores implicam, "coeteris paribus", variações cambiais proporcionalmente mais elevadas para manter a rentabilidade das aplicações em moeda local quando ocorrem mudanças dos prêmios de risco-país.
A lição aprendida pelos países emergentes ao longo dos anos 90 é inequívoca: a volatilidade dos fluxos de capitais e as flutuações da taxa de câmbio para além das crises cambiais/financeiras têm implicado problemas crônicos. Dentre eles, o desequilíbrio financeiro dos agentes domésticos endividados em moeda estrangeira e que decorre do fato de não emitirem dívida externa denominada nas suas moedas; a distorção de preços relativos e da alocação de recursos, decorrente de taxa de câmbio apreciada; e a instabilidade da inflação resultante do elevado "pass through" nessas economias.
Se há razões mais gerais que justificam o controle da taxa de câmbio num ambiente intrinsecamente instável, cabe indagar se existem motivos para o fazer na atual conjuntura brasileira. Antes convém assinalar o caráter de curto prazo dos fluxos que hoje se dirigem ao país, configurando mais um ciclo de liquidez oriundo da modificação dos humores do mercado global e não muito distinto de outros tantos observados entre 1999 e meados de 2002.
Haveria, em tese, dois benefícios da valorização da moeda: a redução da dívida pública e a desaceleração da inflação. De outra parte, ocorreria um custo inequívoco: a deterioração do ajuste externo. No caso do endividamento, obtém-se a redução de uma dívida pública liquidável em reais em troca do aumento do passivo externo de curtíssimo prazo. A inflação só cairá drasticamente se a valorização promover, como na primeira metade dos anos 90, uma mudança durável de preços relativos. Isso é indesejável sobretudo pelos efeitos no emprego.
Considere-se, por fim, o ajuste externo expresso na eliminação do déficit em transações correntes. É certo que esse ajuste contou com uma colaboração importante do crescimento medíocre dos últimos anos e também de uma episódica recuperação de preços de commodities. Mas é inquestionável que a nova configuração de preços relativos estabelecida pelas sucessivas rodadas de desvalorização desde 1999 tem maior responsabilidade no aumento das exportações e na pequena, mas não desprezível, substituição de importações. A discussão pertinente, nesse caso, é a magnitude da desvalorização, e nunca a sua necessidade.
Para aqueles que temem o controle cambial, cabe assinalar o amplo arsenal de medidas disponíveis. Elas vão desde atitudes mais drásticas, como a reversão parcial da conversibilidade da conta de capital, passando pela tributação de entradas e saídas de capitais de acordo com o prazo de permanência, até intervenções mais brandas, como a variação do estoque da dívida indexada ao dólar, alterações nos limites das posições em moeda estrangeira dos bancos, modificação da posição do governo e seus agentes nos mercados a termo e futuro de câmbio, intervenções no mercado à vista ou, simplesmente, alteração na taxa de juros básica.
Assim, fica patente que o debate de interesse do país hoje é o da natureza do controle sobre a taxa de câmbio, e não o da sua necessidade. As autoridades econômicas, ao descartarem esses controles, parecem apostar numa volta das condições internacionais prevalecentes nos anos 90 e nas virtudes e benefícios da integração comandada pelo mercado, esquecendo que graças a esta última é que estamos na atual situação de fragilidade externa e baixo crescimento.


Ricardo Carneiro é professor do Instituto de Economia e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp.


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