UOL




São Paulo, sábado, 03 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NÃO

Oportunidade para o Tesouro

MARCELO ALLAIN

O excepcional recuo da taxa de câmbio nos últimos 45 dias surpreendeu até aos mais otimistas, que imaginavam o dólar cotado pouco acima dos R$ 3. O processo de declínio do câmbio teve início com as firmes captações de recursos externos de prazos curtos, em especial por bancos que buscavam recursos a custo menor no mercado internacional para aplicar em operações mais rentáveis no mercado doméstico. Mas ainda não se observam captações de prazo mais longo -com exceção da emissão soberana, esta semana, com vencimento em 2007-, e o volume de investimento direto (produtivo) vem caindo. Assim, o ingresso atual é, sobretudo, de capitais de curto prazo.
O pronunciado movimento de apreciação do real reacendeu o debate sobre a necessidade de o Banco Central intervir no câmbio para evitar exageros. Essa questão é polêmica não só no mercado financeiro, mas dentro do governo também. A posição manifestada pelo BC é de que o câmbio é flexível e, portanto, não haverá intervenções para definir um piso. Essa posição permite maiores reduções do câmbio, pois desestimula o surgimento de compradores da moeda estrangeira no curto prazo. De um lado, a queda do câmbio traria impactos benéficos sobre a inflação; por outro lado, poderia prejudicar o superávit comercial, a ponto de o ajuste das contas externas ficar comprometido.
O recuo do câmbio expõe um dilema entre melhorar os números de inflação e manter a excelente performance das contas externas. Note-se que ambas variáveis, inflação e balança comercial, reagem com defasagem aos movimentos do câmbio. Assim, somente após alguns trimestres saberemos se a surpreendente queda cambial não comprometerá os saldos comerciais e trará um recuo concreto da inflação. Se isso não se verificar, a afluência de divisas será sucedida por novas pressões de alta do câmbio.
O Banco Central adota desde 1999 um regime de câmbio flexível, no qual, teoricamente, cabem intervenções em situações de falta de liquidez ou de informação heterogeneamente distribuída entre os participantes do mercado. Nenhuma dessas circunstâncias justificaria uma atuação do BC hoje. Nesse regime flexível, porém, o Banco Central pode usar a política monetária para evitar movimentos exagerados do câmbio. As características do ingresso recente de capitais -captações para arbitragem de juros e prazos curtos- e a negociação de taxas prefixadas de um ano abaixo da Selic são sinais de que boa parte da apreciação cambial se deve a juros domésticos elevados.
Não faria sentido o Banco Central manter juros altos e, ao observar a resultante apreciação cambial, contê-la, intervindo no câmbio. O natural seria cortar os juros, desde que a demanda agregada e a inflação permitissem.
Aqui reside um obstáculo. A demanda agregada comporta reduções de juros, mas o modelo de metas de inflação tem amarrado um corte da Selic. Como observado anteriormente, a inflação requer algum tempo para cair, em resposta ao novo patamar de câmbio. Mantidos os juros elevados por período longo, o câmbio pode cair além do nível de equilíbrio de longo prazo, subindo mais tarde, quando as contas externas piorarem, e gerando oscilações desnecessárias no câmbio.
Está correto o BC, portanto, ao se recusar a intervir. Mas isso não significa que o Tesouro Nacional deva desperdiçar uma oportunidade de reduzir seu risco cambial. A distinção entre os papéis dessas instituições nem sempre fica clara para a sociedade. O Tesouro tem o papel de zelar pela política fiscal e pela dívida pública, diferentemente do Banco Central, que tem por objetivo definir política monetária e cambial.
Um terço da dívida mobiliária federal está vinculado às oscilações do câmbio, e a dívida externa pública (líquida das reservas internacionais) supera os US$ 80 bilhões. Esta exposição exagerada do Tesouro Nacional ao câmbio traz riscos desnecessários à gestão da dívida pública, pois os encargos financeiros podem crescer assustadoramente quando as expectativas econômicas se deterioram. Em outras palavras, o Tesouro não tem receitas em dólar, mas decidiu, no passado, emitir dívida indexada ao câmbio, porque era longa e suavizava a subida do dólar num mercado sedento por proteção ("hedge") cambial.
Agora que a situação melhorou, é fundamental que o Tesouro reduza sua exposição cambial, seja diminuindo a oferta de títulos e "swaps" cambiais nos leilões de dívida pública, seja comprando mais dólares à vista para honrar seus compromissos externos. Note-se que essa lógica é a mesma de uma empresa privada que está endividada em dólar e passou vários meses de sufoco desde meados de 2002. Em suma, o Banco Central deveria ver a queda do dólar motivada por capitais de curto prazo como argumento para cortar os juros em breve, e o Tesouro Nacional poderia aproveitar essa janela, cuja duração é imprevisível, para reduzir a exposição cambial da dívida pública.


Marcelo Allain, 35, economista, professor do MBA da Fipe-USP, é vice-presidente do conselho diretor do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
O BC deve intervir na taxa de câmbio?
SIM - Ricardo Carneiro: Liberalismo de pé quebrado

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.