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TENDÊNCIAS/DEBATES
Compromisso com a liberdade de imprensa
O tempo dirá sobre excessos, injustiças e falta de equilíbrio que possam ter ocorrido ao longo da extensa cobertura da crise
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ANDRÉ SINGER
O presidente Luiz Inácio Lula da
Silva assina hoje, no Palácio do
Planalto, a Declaração de Chapultepec,
adotada pela Conferência Hemisférica
sobre Liberdade de Expressão, realizada
no México em 1994. Com o gesto, reafirma-se o compromisso deste governo
com a plena liberdade de imprensa,
conquistada pelo país no processo de
abertura política e consolidada na
Constituição de 1988. Trata-se, também, de boa oportunidade para refletir
sobre os fundamentos do compromisso
assumido, bem como sobre a relação
entre governo e imprensa.
O primeiro dos dez princípios que
formam a declaração é o de que "não há
pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão e de imprensa. O
exercício desta não é uma concessão das
autoridades; é um direito inalienável do
povo". Com tal formulação, o documento retoma a noção contratualista de
que a liberdade de divergir antecede o
estabelecimento da autoridade em particular, da autoridade democrática.
De fato, nos regimes democráticos, a
existência de liberdade de expressão é
condição para a existência da própria
democracia. Por se tratar de um regime
de competição pacífica pelo poder entre
diferentes facções, se não houver um espaço no qual os partidos possam expor
os seus pontos de vista sem censura, em
busca da preferência popular, a democracia não tem como funcionar.
Nos regimes democráticos modernos,
isto é, representativos, a imprensa livre
é a materialização desse espaço público,
ainda que, contraditoriamente, ele seja
cortado pelos interesses privados. Seja
como for, a constituição mesma de partidos democráticos -agrupamentos
dispostos a disputar a direção do Estado
unicamente por meios eleitorais- depende da existência prévia de um pacto
social em torno da liberdade de expressão e da consolidação de uma imprensa
livre.
Daí o sentido fundador de um texto
como a "Carta sobre a Tolerância", de
John Locke, escrito quando a Inglaterra
fazia, ainda no século 17, a primeira revolução burguesa da história. Na carta,
encontra-se o princípio de que a liberdade de expressão é inviolável, uma vez
que não se reconhece argumento racional capaz de justificar que o aderente a
uma fé possa proibir outro indivíduo de
expressar fé diferente. Assim, só a força,
sem a razão, poderia restringir o direito
de alguém dizer o que pensa. "Mutatis
mutandis" é o que defendeu a dirigente
socialista Rosa Luxemburgo dois séculos depois, por ocasião da Revolução
Russa, em 1917, ao afirmar que a liberdade é sempre a liberdade do outro, daquele que pensa diferente.
Recorro à lembrança de dois pensadores tão distantes no tempo, no espaço
e na ideologia para mostrar que a liberdade de expressão é valor comum a todos os que recusam soluções antidemocráticas para os conflitos inerentes à vida em sociedade. É o caso do presidente
Lula: o diálogo e a negociação entre os
diferentes setores têm sido marcas de
seu governo -um governo que favorece o debate e o consenso na pluralidade,
não a imposição.
No âmbito da relação com a imprensa, pode-se discutir o acerto desta ou
daquela iniciativa governamental isolada. Porém, transcorridos 40 meses de
mandato, o fato é que o Brasil respira
um ambiente de absoluta, inequívoca e
saudável liberdade de expressão. Cabe
sublinhar que, em parte deste período,
conteúdo fortemente agressivo ao governo e ao presidente esteve presente no
noticiário sem que tenha havido qualquer reclamação por parte do Executivo, que soube conviver democraticamente com as notícias.
O tempo dirá sobre eventuais excessos, injustiças e falta de equilíbrio que
possam ter ocorrido ao longo da extensa cobertura da crise que se iniciou ano
passado. Afinal, como ressalta a Declaração de Chapultepec, "a credibilidade
da imprensa está ligada ao compromisso com a verdade, à busca da precisão,
imparcialidade e eqüidade". Isso significa que o debate a respeito do exercício
do poder conferido à imprensa precisa
ser realizado à luz de tais valores.
Trata-se, no entanto, de matéria para
outra ocasião. Por ora, o importante é
registrar que a imprensa exerceu o seu
papel de informar, questionar e criticar
com absoluta liberdade. O Brasil deu,
assim, mais alguns passos no sentido de
possuir mecanismos capazes de garantir o funcionamento do Estado de Direito e a democracia, quaisquer que sejam
as circunstâncias. Por tudo isso, o gesto
do presidente da República hoje reveste-se de particular significado.
André Singer, 48, professor do Departamento
de Ciência Política da Universidade de São Paulo
e ex-secretário de Redação da Folha, é secretário de Imprensa e porta-voz da Presidência da
República.
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