São Paulo, quarta-feira, 03 de maio de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Compromisso com a liberdade de imprensa


O tempo dirá sobre excessos, injustiças e falta de equilíbrio que possam ter ocorrido ao longo da extensa cobertura da crise

ANDRÉ SINGER

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assina hoje, no Palácio do Planalto, a Declaração de Chapultepec, adotada pela Conferência Hemisférica sobre Liberdade de Expressão, realizada no México em 1994. Com o gesto, reafirma-se o compromisso deste governo com a plena liberdade de imprensa, conquistada pelo país no processo de abertura política e consolidada na Constituição de 1988. Trata-se, também, de boa oportunidade para refletir sobre os fundamentos do compromisso assumido, bem como sobre a relação entre governo e imprensa.
O primeiro dos dez princípios que formam a declaração é o de que "não há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão e de imprensa. O exercício desta não é uma concessão das autoridades; é um direito inalienável do povo". Com tal formulação, o documento retoma a noção contratualista de que a liberdade de divergir antecede o estabelecimento da autoridade em particular, da autoridade democrática.
De fato, nos regimes democráticos, a existência de liberdade de expressão é condição para a existência da própria democracia. Por se tratar de um regime de competição pacífica pelo poder entre diferentes facções, se não houver um espaço no qual os partidos possam expor os seus pontos de vista sem censura, em busca da preferência popular, a democracia não tem como funcionar.
Nos regimes democráticos modernos, isto é, representativos, a imprensa livre é a materialização desse espaço público, ainda que, contraditoriamente, ele seja cortado pelos interesses privados. Seja como for, a constituição mesma de partidos democráticos -agrupamentos dispostos a disputar a direção do Estado unicamente por meios eleitorais- depende da existência prévia de um pacto social em torno da liberdade de expressão e da consolidação de uma imprensa livre.
Daí o sentido fundador de um texto como a "Carta sobre a Tolerância", de John Locke, escrito quando a Inglaterra fazia, ainda no século 17, a primeira revolução burguesa da história. Na carta, encontra-se o princípio de que a liberdade de expressão é inviolável, uma vez que não se reconhece argumento racional capaz de justificar que o aderente a uma fé possa proibir outro indivíduo de expressar fé diferente. Assim, só a força, sem a razão, poderia restringir o direito de alguém dizer o que pensa. "Mutatis mutandis" é o que defendeu a dirigente socialista Rosa Luxemburgo dois séculos depois, por ocasião da Revolução Russa, em 1917, ao afirmar que a liberdade é sempre a liberdade do outro, daquele que pensa diferente.
Recorro à lembrança de dois pensadores tão distantes no tempo, no espaço e na ideologia para mostrar que a liberdade de expressão é valor comum a todos os que recusam soluções antidemocráticas para os conflitos inerentes à vida em sociedade. É o caso do presidente Lula: o diálogo e a negociação entre os diferentes setores têm sido marcas de seu governo -um governo que favorece o debate e o consenso na pluralidade, não a imposição.
No âmbito da relação com a imprensa, pode-se discutir o acerto desta ou daquela iniciativa governamental isolada. Porém, transcorridos 40 meses de mandato, o fato é que o Brasil respira um ambiente de absoluta, inequívoca e saudável liberdade de expressão. Cabe sublinhar que, em parte deste período, conteúdo fortemente agressivo ao governo e ao presidente esteve presente no noticiário sem que tenha havido qualquer reclamação por parte do Executivo, que soube conviver democraticamente com as notícias.
O tempo dirá sobre eventuais excessos, injustiças e falta de equilíbrio que possam ter ocorrido ao longo da extensa cobertura da crise que se iniciou ano passado. Afinal, como ressalta a Declaração de Chapultepec, "a credibilidade da imprensa está ligada ao compromisso com a verdade, à busca da precisão, imparcialidade e eqüidade". Isso significa que o debate a respeito do exercício do poder conferido à imprensa precisa ser realizado à luz de tais valores.
Trata-se, no entanto, de matéria para outra ocasião. Por ora, o importante é registrar que a imprensa exerceu o seu papel de informar, questionar e criticar com absoluta liberdade. O Brasil deu, assim, mais alguns passos no sentido de possuir mecanismos capazes de garantir o funcionamento do Estado de Direito e a democracia, quaisquer que sejam as circunstâncias. Por tudo isso, o gesto do presidente da República hoje reveste-se de particular significado.


André Singer, 48, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e ex-secretário de Redação da Folha, é secretário de Imprensa e porta-voz da Presidência da República.


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