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As lacunas capitais do PT
A corrosão política do PT encontrou condições ideais com a confluência entre pragmatismo sindical e lulismo
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RICARDO ANTUNES
Os recentes episódios na devassa
da conta do caseiro Francenildo, a
demissão de Palocci e a dança desbalanceada de Angela Guadagnin são expressões da turbulência que atingiu o PT e o
seu governo. Partido que padeceu, em
sua história recente, de algumas lacunas
capitais que aqui podemos tão-somente
indicar.
A primeira delas é a flacidez ideológica de um partido que se pretendeu de
esquerda. Nascido sob a direção do chamado "novo sindicalismo" com sede no
ABC paulista, avesso à reflexão, o desdém do PT à teoria foi sempre seu traço
distintivo. De Marx a Florestan Fernandes, passando por Caio Prado Jr., a assimilação teórica feita pelo seu núcleo dominante, com as exceções de praxe, foi
sempre trilhada pela recusa da teoria
emancipatória, por mais que a esquerda
petista gritasse. O (o)caso de Lula é
exemplar.
O novato PT encontrava algumas similitudes com o velho trabalhismo inglês. Quando Tony Blair deslanchou o
processo de conversão do Labour Party
em "New Labour", em 1994, eliminou
qualquer vestígio que mantivesse a designação "socialista", até mesmo como
referência formal. A substituição da
cláusula 4 do estatuto partidário do
"New Labour", que defendia a "propriedade comum dos meios de produção", pela defesa do "empreendimento
do mercado e rigor da competição", é
exemplar e fala por si só. Aqui, ao longo
da década de 90, algo similar também
ocorria no PT. De modo lento, mas irreversível.
A segunda lacuna capital do PT (e de
seu governo) foi sua corrosão política.
Se, em sua origem, o partido encontrava
viva ancoragem nas lutas sociais e sindicais, pouco a pouco foi abandonando
seu traço genético e abraçando crescente e avidamente a pauta institucional,
dando centralidade cada vez maior aos
embates eleitorais. E, com isso, foi se
consolidando algo a que o PT era avesso, isto é, uma política de alianças cada
vez mais desvertebrada e policlassista,
que chegou a flertar com núcleos mais
duros da direita brasileira, como foi o
caso de Maluf em São Paulo.
Não é de estranhar, então, que a simbiose vivenciada pelo PT viesse a se converter em um caso de fagocitose. E é isso
que ajuda a entender sua adesão a uma
política em desacordo com sua programática anterior. Da privatização da Previdência à liberação dos transgênicos,
da política de juros que felicita os bancos ao superávit primário que infelicita
os pobres, que dependem de seu trabalho para viver.
A flacidez ideológica e a corrosão política encontraram, no PT, condições
ideais para sua vigência quando, em
meados dos anos 90, se deu a confluência e acordo entre o pragmatismo sindical de Lula e o lulismo (vale lembrar que
Delúbio vem da CUT) e o aparelhamento da máquina partidária, no qual ninguém é capaz de superar José Dirceu e
sua turma. A costura entre o pragmatismo sindical e "apolítico" de Lula e a
postura aparelhista de Dirceu consolidou uma nova maioria no PT, que desconstruiu sua origem democrática, pluralista, socialista e de base, substituindo-a por uma gestão que fundia mandonismo com messianismo, irradiando
práticas que se desenvolveram em Santo André e Ribeirão Preto e que hoje
avassalaram o (des)governo do PT.
O desmoronamento ético, outra lacuna capital, não demorou a aflorar. Depauperado ideologicamente, atolado na
política sem vértebra que lhe levou ao
inferno (basta lembrar do "aliado" Roberto Jefferson e seu PTB), não foi difícil
presenciar seu definhamento ético. Rolava ladeira abaixo o único charme que
o PT ainda ostentava: o de ser o paladino da ética, elemento não mais presente
na política do grupo dominante que
manda no PT.
O partido da ética implementava uma
política verdadeiramente patética, cujo
lance recente foi ver a "res publica", comandada por um ex-operário, devassar
as contas e a intimidade de um homem
do povo, o caseiro Francenildo, para
impedir o desmoronamento cabal da
prática da corrupção política que avassalou o PT e seu governo.
Por isso, não parece demais recordar
Guimarães Rosa: "Será [...] que, quando
um tem noção de resolver a vender alma sua, que é porque ela já estava dada
vendida, sem se saber; e a pessoa sujeita
está só é certificando o regular dalgum
velho trato que já se vendeu aos poucos,
faz tempo?".
Ricardo Antunes é professor titular de sociologia da Unicamp e autor de, entre outros, "O Caracol e sua Concha" (Boitempo).
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