São Paulo, quinta-feira, 03 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Réquiem para George W. Bush

AMAURY CASTANHO

Não é meu costume desejar réquiem para ninguém. Nunca o fiz. Nem mesmo para os que me caluniaram, processaram, seqüestraram ou injuriaram. Pelo contrário, procuro dar a todos a minha solidariedade e respeito. Causa-me uma íntima satisfação não ter rancor contra ninguém, por mais que se considere meu desafeto ou inimigo.
No caso de George W. Bush, ainda presidente dos EUA, o réquiem deste artigo não é para a sua pessoa. Menos ainda para alguém de sua família, ilustre aliás. Explico-me: o sorridente presidente entrou de gaiato na guerra contra Saddam Hussein. Não diria contra o Iraque, povo que já vinha sofrendo horrores. Venceu a guerra em dois ou três meses. Foi fácil. Mas está perdendo a paz; e perdendo feio.


O Iraque está sendo, na verdade, um atoleiro. E o leitor ponha destruição, mortes e massacre nisso


Lembro-me de haver lamentado, um ano atrás, o fato de o presidente Bush ter sido deliberadamente surdo aos paternais, autorizados e veementes apelos feitos pelo venerado papa João Paulo 2º. O sucessor do apóstolo Pedro movimentou toda a respeitada diplomacia do Vaticano, empenhando-se, pessoalmente, em favor da paz contra essa guerra. Bush não ouviu a ninguém. Somente a si mesmo e à própria ambição, ao superaliado Tony Blair e a poucos outros. Passou por cima da autoridade da Organização das Nações Unidas, que em nenhum momento endossou a sua louca aventura. Quis porque quis a guerra contra o Iraque e está assistindo, na Casa Branca, aos tristes resultados de sua insensatez bélica. Contra o cruel ditador Saddam Hussein? Certo. Ou, no fundo, mais com vista grossa para os lençóis de petróleo do Iraque? Parece.
As últimas notícias são terríveis. A invasão e ocupação militar estrangeira da antiga Babilônia dos jardins suspensos está em um quase incontrolável levante contra americanos e ingleses, italianos, japoneses e quem quer que ali tenha posto os pés. Bush imaginou que suas tropas fariam um passeio. O Iraque está sendo, na verdade, um atoleiro. E o leitor ponha destruição, mortes e massacre nisso. Pouco importa que os EUA, maior potência militar de toda a história humana, mantenha ali um formidável Exército, com os armamentos mais sofisticados que se possa imaginar. Pouco importa, também, que tenham sido derrubadas sob aplausos gerais todas as estátuas do prepotente ditador iraquiano, criminoso de guerra, sangüinário e odiado pela maioria xiita do seu povo, que ele perseguiu e oprimiu.
Nestes dias, a população de cidades como Kufa, Najaf e outras é liderada pelo jovem xeque xiita Moqtada al Sadr, que comanda milhares de fanáticos partidários dispostos a tudo destruir e a matar quem esteja à sua frente. E isso em nome de Alá, como se Deus, que é pai amoroso, justificasse o ódio de quem quer que seja. Como se não bastasse, arquiinimigos como os sunitas e drusos, seguidores de Maomé e fiéis ao islã, acabaram se unindo. O importante é expulsar os invasores estrangeiros, sejam quem forem.
Estou refletindo sobre o que escreveu recentemente Whoopi Goldberg, roteirista, produtora e comediante norte-americana: "Espere um minuto. Esse homem, George Bush, está liderando como um americano ou como um cristão?". A pergunta é boa, inteligente e contundente. Bush, na realidade, não está governando como um norte-americano -os EUA, aliás, tiveram outros presidentes bem mais empenhados no bem do próprio país-, muito menos como um cristão. Seria uma blasfêmia afirmá-lo. É oportuno que o leitor saiba que George W. Bush não é católico. É batista, se estou certo. Pouco importa. O lamentável é que ele nada aprendeu da mensagem do Nazareno, príncipe e arauto da paz, proclamador da lei maior do amor, que deu a vida pelos amigos. Proclamador, também, do perdão até aos inimigos.
Bush -assessorado por líderes evangélicos ultradireitistas, como é público-, que inicia os seus dias na Casa Branca com orações coletivas (sic!), está liderando uma guerra que, infeliz e injustamente, já foi comparada às Cruzadas dos séculos 11 e 12, cujo objetivo maior foi, queiram ou não queiram os anticlericais de sempre, a libertação do profanado Santo Sepulcro de Cristo...
Existem saídas para a atual situação vivida pelas tropas invasoras do Iraque? Acredito que sim. Primeiro, passarem, o quanto antes, a responsabilidade maior da reconstrução do Iraque à ONU, minimizada e marginalizada pelo presidente Bush antes do conflito. Depois, promoverem, o quanto antes, eleições livres e democráticas, devolvendo aos iraquianos xiitas, sunitas, curdos e cristãos, reconciliados, o autogoverno a que têm todo o direito. E, o quanto antes, senhor presidente Bush, fazer os jovens filhos dos EUA retornarem às suas casas, podendo realizar os seus belos sonhos. Antes que outras centenas ou milhares deles tenham o próprio túmulo no distante e árido Oriente Médio...

Dom Amaury Castanho, 76, jornalista, é bispo emérito de Jundiaí (SP). É autor de, entre outros livros, "Por Uma Nova Sociedade no Terceiro Milênio".


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