|
Próximo Texto | Índice
Mundo submerso
Um coro de santimônia corporativa tenta abafar as suspeitas que cercam o comportamento do presidente do Senado
ANTIGAS lendas da Bretanha relatam o estranho destino de um
mosteiro que servia,
segundo consta, de palco para repetidas cenas de licenciosidade e
devassidão. Os abusos teriam
chegado a tal ponto, diz a narrativa, que mesmo as vastas reservas
da paciência divina com os descaminhos do homem terminaram por se esgotar. O templo foi
então engolido pelas águas do
oceano.
Em certas noites de inverno,
contudo, os habitantes das costas bretãs julgam ouvir os sinos
do campanário submerso: é o
fantasma da velha catedral que,
numa advertência aos vivos, assoma sinistramente à superfície.
Numa imagem famosa, Renan
-não o nosso Calheiros, mas sim
o escritor francês a quem o presidente do Senado deve o primeiro
nome- comparou essa catedral
às memórias do passado, que vez
por outra emergem em bloco das
profundezas da consciência.
Não se distinguem ainda plenamente, no lusco-fusco das investigações policiais, as dimensões do edifício que está submerso no passado ainda recente do
senador peemedebista. Os desvãos de sua vida particular, devassados de forma constrangedora aos olhares do público, interessam pouquíssimo à saúde das
instituições republicanas -e devem ser preservados na medida
em que não tangenciem a esfera
própria aos negócios do Estado.
Mais do que o obscuro, o inexplicável, o incerto e o não-sabido,
aquilo que o próprio Renan Calheiros admite à luz do dia já seria contudo suficiente para recomendar o seu afastamento da
presidência do Senado.
No "affaire" Mônica Veloso,
muitos mistérios podem permanecer, e outros tantos podem ser
revelados; resta um fato incontornável, sobre o qual nada mais
precisa ser esclarecido: o de que
Renan Calheiros recorreu aos
préstimos de um lobista da construtora Mendes Júnior para efetuar operações sigilosas no âmbito da sua vida particular.
Eis uma evidência de promiscuidade entre interesses privados e autoridade pública que
projeta, sobre as decisões e atitudes de Renan Calheiros, uma
sombra incompatível com a imparcialidade e o decoro exigidos
por seu cargo. Suspeita agravada
pela notícia de que a Mendes Júnior beneficiou-se de emendas
orçamentárias patrocinadas pelo presidente do Senado, numa
obra -a construção de um cais
em Maceió- contestada pelo
Tribunal de Contas da União.
Enquanto novos fatos não vêm
à tona, um coro quase unânime
de senadores procura abafar por
meio de cânticos de santimônia
corporativa os dobres agourentos da suspeita. É que no mundo
submerso das relações inconfessáveis entre o público e o privado
há, sem dúvida, lugar para mais
de um único pecador.
Próximo Texto: Editoriais: Indústria menor Índice
|