São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007

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Mundo submerso

Um coro de santimônia corporativa tenta abafar as suspeitas que cercam o comportamento do presidente do Senado

ANTIGAS lendas da Bretanha relatam o estranho destino de um mosteiro que servia, segundo consta, de palco para repetidas cenas de licenciosidade e devassidão. Os abusos teriam chegado a tal ponto, diz a narrativa, que mesmo as vastas reservas da paciência divina com os descaminhos do homem terminaram por se esgotar. O templo foi então engolido pelas águas do oceano.
Em certas noites de inverno, contudo, os habitantes das costas bretãs julgam ouvir os sinos do campanário submerso: é o fantasma da velha catedral que, numa advertência aos vivos, assoma sinistramente à superfície.
Numa imagem famosa, Renan -não o nosso Calheiros, mas sim o escritor francês a quem o presidente do Senado deve o primeiro nome- comparou essa catedral às memórias do passado, que vez por outra emergem em bloco das profundezas da consciência.
Não se distinguem ainda plenamente, no lusco-fusco das investigações policiais, as dimensões do edifício que está submerso no passado ainda recente do senador peemedebista. Os desvãos de sua vida particular, devassados de forma constrangedora aos olhares do público, interessam pouquíssimo à saúde das instituições republicanas -e devem ser preservados na medida em que não tangenciem a esfera própria aos negócios do Estado.
Mais do que o obscuro, o inexplicável, o incerto e o não-sabido, aquilo que o próprio Renan Calheiros admite à luz do dia já seria contudo suficiente para recomendar o seu afastamento da presidência do Senado.
No "affaire" Mônica Veloso, muitos mistérios podem permanecer, e outros tantos podem ser revelados; resta um fato incontornável, sobre o qual nada mais precisa ser esclarecido: o de que Renan Calheiros recorreu aos préstimos de um lobista da construtora Mendes Júnior para efetuar operações sigilosas no âmbito da sua vida particular.
Eis uma evidência de promiscuidade entre interesses privados e autoridade pública que projeta, sobre as decisões e atitudes de Renan Calheiros, uma sombra incompatível com a imparcialidade e o decoro exigidos por seu cargo. Suspeita agravada pela notícia de que a Mendes Júnior beneficiou-se de emendas orçamentárias patrocinadas pelo presidente do Senado, numa obra -a construção de um cais em Maceió- contestada pelo Tribunal de Contas da União.
Enquanto novos fatos não vêm à tona, um coro quase unânime de senadores procura abafar por meio de cânticos de santimônia corporativa os dobres agourentos da suspeita. É que no mundo submerso das relações inconfessáveis entre o público e o privado há, sem dúvida, lugar para mais de um único pecador.


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