São Paulo, sábado, 03 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A classificação indicativa dos filmes deve ser mais flexível?

NÃO

A discussão vai além da faixa etária

RUBENS NAVES

O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, assinou portaria que muda as regras de classificação indicativa para cinema, fitas de vídeo e DVDs. A portaria permite que crianças e adolescentes tenham acesso a salas de cinema cujo filme tenha recebido classificação imediatamente superior à faixa etária da criança, desde que acompanhada por seus pais. O principal objetivo das mudanças propostas pelo Ministério da Justiça seria a divisão da responsabilidade pelo conteúdo do que assistem crianças e adolescentes entre o Estado, a família e a sociedade.
Sem dúvida, situa-se nesse tripé a rede protetora que toda criança deveria ter, e isso está expressamente dito em nossa Constituição, no artigo 227. No entanto, considerando ser esse um tema com alto grau de subjetividade e delicadeza, já que diz respeito ao acesso a conteúdos que poderiam, em tese, afetar o desenvolvimento psicológico e emocional da criança e do adolescente, uma mudança dessa ordem deveria ter sido mais discutida com a sociedade.
O Ministério da Justiça realizou pesquisa, em seu site, com 263 pessoas que, em sua maioria, foram contrárias a uma versão anterior da portaria, que abria brecha para que uma criança de 11 anos pudesse assistir a um filme desaconselhável para menores de 16. A atual portaria representa uma mudança menos radical, mas não deixa de ser apressada. Certamente, 263 cidadãos são um universo reduzido de consultas, a despeito de terem sido ouvidos especialistas no assunto.
Sabe-se que o desenvolvimento de cada criança e adolescente é único. Há os que parecem mais maduros apesar da idade que têm, há os que parecem lutar contra o amadurecimento. É uma questão com alta dose de arbitrariedade, e a própria opinião dos pais pode não ser consensual a respeito do grau de amadurecimento de seus filhos. Qualquer mudança nessa área exigiria um debate aprofundado com especialistas em educação, em comunicação e com toda a sociedade.
A súbita liberalização da classificação nos cinemas (que não pode ser confundida com censura, pois está prevista no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, como forma de proteger as crianças e adolescentes de conteúdos perniciosos) pode contaminar a discussão sobre a qualidade da programação voltada às crianças e adolescentes na televisão brasileira. E esta, sim, é uma discussão com grande alcance, pois atinge todos os níveis socioeconômicos.
Na 4ª Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes, realizada em abril deste ano no Rio de Janeiro, especialistas do mundo inteiro debateram esse conteúdo e a importância de criar marcos regulatórios. Patrícia Edgar, presidente da Fundação Cúpula de Mídia para Crianças e Adolescentes e uma especialista nesse tema, analisando a programação televisiva para o público infanto-juvenil, afirmou que ela "está submetida aos interesses da propaganda, do merchandising e do consumo, quando deveria tratar de questões relacionadas à vida humana, ao processo de crescimento e autoconhecimento das crianças".
A própria carta dos adolescentes presentes ao encontro pediu a regulamentação dos meios de comunicação de massa a partir da criação, pela sociedade, de conselhos de ética e denúncias em todos os países, além de espaço nas escolas para que elas possam receber, buscar e utilizar as informações de forma crítica e produtiva.
Os marcos regulatórios que vêm sendo discutidos em diversos países devem levar em conta análises de conteúdo da violência no cinema e nas diversas mídias. Pais e especialistas, meios de comunicação e Estado, crianças e jovens, todos precisam ser ouvidos, até que se chegue a um grau consensual de autonomia, dentro do qual as famílias, tão diferentes entre si, possam avaliar com algum critério o que seus filhos vêem. Para isso, é preciso discutir mais profunda e abertamente, analisar o tipo de influência que os filmes exercem em pessoas em fase de formação, os diversos tipos de violência (inclusive as sutis, como as que envolvem preconceito social ou de gênero).
Uma grande produção atualmente em cartaz mostra como essa questão é complexa. Muitos pais que levaram seus filhos pequenos para assistir à terceira aventura de Harry Potter foram surpreendidos com a violência e o impacto de algumas cenas. Certamente, ao tentarem conciliar o sono de seus filhos à noite, refletiram sobre a adequação ou não do filme, classificado como livre.
De tão cercados por imagens violentas, seja em telejornais, seja na ficção, será que não estamos nos tornando gradativamente insensíveis a elas, esquecendo que, aos olhos de uma criança ou de um adolescente, uma imagem pode chegar tão potente como um tiro?
Até que essas influências estejam claras, a medida mais prudente seria revogar a portaria e reeditá-la mais adiante, enriquecida pela discussão sobre a qualidade da produção cultural e da programação de mídia que começa a ganhar corpo na sociedade.


Rubens Naves, 61, advogado, membro do Conselho da Transparência Brasil, é diretor-presidente da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente.


Texto Anterior:
TENDÊNCIAS/DEBATES
Luiz Flávio Gomes: Educar, melhor que proibir

Próximo Texto:
Painel do leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.