São Paulo, sábado, 03 de julho de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A PEC 46, que reintroduz aposentadoria integral ao Judiciário, deve ser aprovada pelo Congresso?

NÃO

Medida deprecia lógica da previdência

JOSÉ CECHIN

Na tradição brasileira, o cargo de servidor público é vitalício, parte da vida no exercício da atividade e parte na inatividade, mas sempre com remuneração integral.
Isso mudou na reforma do presidente Lula, que quebrou essa tradição e estabeleceu como proventos de inatividade a média aritmética simples dos 80% mais altos salários de contribuição. Essa regra fora adotada no INSS em 1999, mas com teto de benefícios e aplicação do fator para ajustar diferentes tempos de fruição conforme idade de aposentadoria.
Quebrar longa tradição exigiu muito esforço. As regras vigentes até as reformas permitiam aposentadorias com proventos integrais, mesmo se o tempo de serviço público fosse muito reduzido.
Bastava alcançar a estabilidade em dois anos de serviço para ter direito à aposentadoria integral. Muitas pessoas com longo tempo de contribuição ao INSS prestavam concurso público para uma carreira bem remunerada simplesmente para, em pouco tempo, alcançar o direito à aposentadoria integral. A conta quem pagava -e ainda paga- eram os contribuintes da alta carga tributária que temos.
A regra era discriminatória. Não é meramente questão financeira ou de valor das aposentadorias; trata-se de vantagem que não pode estar ao alcance de todos os brasileiros, isso porque quase nunca o histórico de contribuições justificaria o valor pelo salário final.
As reformas aperfeiçoaram as regras e evitaram excessos e privilégios. As emendas estabeleceram que a previdência fosse contributiva e atuarial, tanto para trabalhadores do setor privado quanto para servidores públicos, independente de ocupação ou cargo. Esse é o princípio fundamental da previdência: contribuir para ter direito, e o valor do direito (aposentadoria) deve ser o justificado pelo conjunto de todas as contribuições.
Em um sistema que permita aposentadorias pelo último salário, dificilmente se conseguirá observar esse princípio. É fácil entender o porquê. Em todas as carreiras, públicas ou privadas, os salários crescem com o tempo de trabalho, experiência e produtividade. O valor das contribuições é baixo no começo porque a remuneração é baixa; será maior no final, quando a remuneração é mais alta. Assim, o valor das contribuições não é definido pelo último salário, mas pela média dos salários de contribuição.
Por isso, a regra da média é coerente com os princípios previdenciários, especialmente o principal deles, segundo o qual cada um deve financiar a sua aposentadoria. A magistratura é carreira essencial a qualquer sociedade democrática. É com seus importantes serviços que se garante Justiça a todos. Suas decisões devem ser independentes; um dos meios de preservar a independência é a estabilidade funcional aliada a uma adequada remuneração.
Mas não vejo como essencial para essa independência que o magistrado se aposente segundo critérios diferentes das outras categorias de servidores. Proventos de aposentadoria iguais ao último salário, como regra diferenciada, não são essenciais para o cumprimento adequado das funções de Estado que se requerem da magistratura e das carreiras típicas de Estado.
Ademais, a discriminação deprecia o sistema de Previdência, cria aspirações inadequadas, desestimula a participação daqueles que não terão acesso às vantagens.
É justo que a pessoa, de qualquer profissão, tenha rendimentos na aposentadoria não muito inferiores ao último salário.
As sociedades desenvolveram mecanismos que permitem a complementação das aposentadorias para valores próximos ou até mesmo superiores à última remuneração. O que se requer é que cada um obtenha isso pelo próprio esforço.

JOSÉ CECHIN, doutor em economia pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), ex-ministro da Previdência e Assistência Social (governo Fernando Henrique), é superintendente-executivo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar.


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