São Paulo, terça-feira, 03 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Aparência e realidade

Parece que o Brasil ingressou em novo ciclo de crescimento, facultado pela rejeição de "aventuras". Em realidade, entramos em fase de alívio econômico estreito, frágil e superficial. Estreito, porque dependente das exportações do agronegócio e de demanda reprimida por consumo e por crédito. Frágil, porque sujeito a ser revertido pela interação entre choques externos e perda de confiança na capacidade do governo de honrar suas dívidas. Superficial, porque ocorrido numa economia que ainda vê a informalidade aumentar e a participação dos salários na renda nacional diminuir.
Parece que, aos trancos e barrancos, o país continua a desprivatizar o Estado. Em realidade, o descumprimento da promessa de reformar o financiamento eleitoral permite o achacamento de grandes empresários. Hegemonismo partidário, dirigismo industrial e fisiologismo predatório convergiram para criar, nas relações entre o poder e o dinheiro, clima de quarto mundo.
Parece que a imprensa exerce mais do que nunca seu papel de investigar, às vezes distorcido pelos excessos do denuncismo. Em realidade, as revelações são seletivas. Dependentes dos favores do governo e sujeitas à mesma mistura de interesses e preconceitos que aflige a plutocracia brasileira em geral, muitas empresas de mídia se deixam empurrar para cá e para lá com relativa facilidade.
Parece que o PT no governo substituiu o esquerdismo inconseqüente pelo compromisso maduro com o social. Em realidade, a política das "redes de proteção social", já incapaz de enfrentar a exclusão e a desigualdade no Brasil, virou ramo de propaganda -projeto apenas discursivo. E objeto de chacota entre os quadros dirigentes.
Parece que o Brasil avança, apesar de tudo, a partir daquilo que ele tem de melhor: as melhores empresas, escolas e comunidades. Em realidade, novo dualismo emerge. Por imperativo de sobrevivência, os setores dinâmicos cortam, em vez de multiplicar, vínculos com o resto da sociedade. Voltam-se para fora do país. O outro Brasil, cheio de energia frustrada, fica na mão. Alguns tentam escapar de qualquer jeito, ainda que correndo o risco de morrer nos desertos do Arizona.
Parece que a retomada de algum crescimento econômico diminui as chances, que já seriam pequenas, de virada na próxima sucessão presidencial. Em realidade, há mais oportunidade para grande surpresa e reorientação decisiva sem pânico do que com pânico.
Parece que a eleição presidencial de 2006 já está decidida. Lula será reeleito, e terá como seu opositor principal, na falta prudente do presidente anterior, figura previsível, como o atual governador de São Paulo. Em realidade, o povo brasileiro continua a querer mudança de verdade e a buscar quem a queira e quem a possa fazer. Organizados quase todos os partidos em duas coalizões que representam a mesma coisa e envenenada a mídia por um misto de dependência e de cinismo, não será fácil ao eleitorado encontrar quem procura. Iniciativas políticas arrojadas podem, entretanto, mudar radicalmente esse quadro. A pasmaceira de agora pode parecer eterna -até o momento em que ela comece a parecer, a milhões de desesperançados -de todas as classes sociais-, desnecessária.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Imprensa e Judiciário
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.