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O julgamento de Zélia Cardoso de Mello
TALES CASTELO BRANCO
Naquele momento, homenageava o manto da defesa: a mais sagrada instituição constitucional dos embates forenses
APÓS 14 anos de tormentosa espera, a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello foi absolvida, no
dia 18 de julho, pela Terceira Turma
do Tribunal Regional Federal, sediado em Brasília. A decisão do TRF, metódica e racional, consubstanciou a
vitória da Justiça: apagou a sentença
de primeiro grau de jurisdição, que a
havia condenado a 13 anos e 4 meses
de reclusão, em decisão marcantemente contrária à prova contida nos
autos da ação penal.
O processo de Zélia Cardoso de Mello representa uma prolongada história de amargas surpresas. Após muitas ações da CPMI (1992) que investigava as denúncias de Pedro Collor
contra o então presidente da República e Paulo César Cavalcante Farias, o
"PC", iniciou-se, com o inquérito policial promovido pela Polícia Federal,
em Brasília, uma perseguição unilateral, com a única preocupação de atingir a ex-ministra e levá-la ao banco
dos réus.
O inquérito policial, após concluído, deixava tanto a desejar ao apontar
Zélia Cardoso de Mello como responsável pela prática de atos irregulares
no exercício da função pública que o
ex-procurador-geral da República,
Aristides Junqueira Alvarenga, em
manifestação de seu próprio punho,
requereu ao STF -na época, a instância judicial competente para o julgamento da causa- a devolução dos autos à Polícia Federal para a realização
de várias diligências, por entender
que não havia elementos suficientes
para o oferecimento de denúncia contra a ex-ministra.
As diligências foram rigorosamente
cumpridas, resultando daí provas inteiramente favoráveis a ela. Nesse
contexto, era de esperar que o inquérito fosse arquivado: se inexistiam,
antes, elementos para o oferecimento
da denúncia, com maior razão inexistiam depois, quando tudo de essencial
e insuspeito lhe favorecia.
Mas, inusitadamente, em vez de o
inquérito policial retornar à apreciação do procurador-geral, foi encaminhado a um subprocurador da República, que ofereceu inesperada denúncia, imputando à ex-ministra o
crime de corrupção passiva, sob a alegação de que o reajuste de tarifas de
ônibus era feito de forma irregular
para atender aos interesses do chamado "esquema PC".
A seguir (1994), o plenário do STF
recebeu a denúncia, acompanhando o
voto do relator, ministro Néri da Silveira, que ressaltou não ser aquele um
ato de julgamento, porque a decisão
final somente seria possível após a coleta de provas. Operou-se, então, a
instrução criminal, sendo ouvidas
inúmeras testemunhas e nada se
comprovando contra a ex-ministra.
O ministro-relator determinou ainda diligência de esclarecimento nos
órgãos técnicos relacionados ao fato
que se apurava, daí resultando, mais
uma vez, prova favorável a ela.
Surpreendentemente, quando se
aguardava o julgamento final, o STF
cancelou a súmula do foro privilegiado e determinou a remessa dos autos
à primeira instância. E para lá foram
os 13 volumes e 47 apensos do processo: o que já era do pleno conhecimento do STF passou a ser examinado pela Justiça Federal, que nada conhecia
dos autos até então.
Sobreveio, assim, a sentença condenatória, no ano 2000, e, agora
(2006), finalmente, em grau de recurso, a alentada decisão absolutória, que
exigiu, sem dúvida, esforço sobre-humano dos julgadores, especialmente
do relator, desembargador federal
Tourinho Neto, ao proferir minucioso e brilhante voto.
Passada a excitação da alegria que
sempre comove nessas horas o coração do advogado, relembro não ter
abandonado, depois da sustentação
oral, a tribuna da defesa, acompanhando de pé, por mais de três horas,
os votos proferidos pelos ilustres
membros do TRF. E, proclamada a
decisão final, tomado de forte emoção, libertei-me da veste talar que ornamentara meus ombros. Dobrei-a
carinhosamente e a beijei, num gesto
simples e fortuito. Naquele momento, homenageava o manto da defesa: a
mais sagrada instituição constitucional dos embates forenses.
Terminava a luta e o sofrimento de
14 anos, mas o império da razão guardava nas suas entranhas o doloroso
refluxo da angústia desnecessária:
nossa Suprema Corte de Justiça, ao
alterar a jurisprudência oficial, após o
processo estar pronto para ser decidido, transferindo para outras instâncias judiciais o dever de julgar, olvidou-se de que o destinatário da prestação jurisdicional é sempre um ser
humano; esqueceu-se da célebre advertência de Rui Barbosa: "Justiça
atrasada não é justiça, senão injustiça
qualificada e manifesta".
TALES CASTELO BRANCO, 70, advogado criminal, presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo, é advogado da ex-ministra Zélia Cardoso de Mello e autor, entre outras obras, de "Teoria e Prática dos Recursos Criminais".
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