São Paulo, quinta-feira, 03 de agosto de 2006

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O julgamento de Zélia Cardoso de Mello

TALES CASTELO BRANCO

Naquele momento, homenageava o manto da defesa: a mais sagrada instituição constitucional dos embates forenses

APÓS 14 anos de tormentosa espera, a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello foi absolvida, no dia 18 de julho, pela Terceira Turma do Tribunal Regional Federal, sediado em Brasília. A decisão do TRF, metódica e racional, consubstanciou a vitória da Justiça: apagou a sentença de primeiro grau de jurisdição, que a havia condenado a 13 anos e 4 meses de reclusão, em decisão marcantemente contrária à prova contida nos autos da ação penal.
O processo de Zélia Cardoso de Mello representa uma prolongada história de amargas surpresas. Após muitas ações da CPMI (1992) que investigava as denúncias de Pedro Collor contra o então presidente da República e Paulo César Cavalcante Farias, o "PC", iniciou-se, com o inquérito policial promovido pela Polícia Federal, em Brasília, uma perseguição unilateral, com a única preocupação de atingir a ex-ministra e levá-la ao banco dos réus.
O inquérito policial, após concluído, deixava tanto a desejar ao apontar Zélia Cardoso de Mello como responsável pela prática de atos irregulares no exercício da função pública que o ex-procurador-geral da República, Aristides Junqueira Alvarenga, em manifestação de seu próprio punho, requereu ao STF -na época, a instância judicial competente para o julgamento da causa- a devolução dos autos à Polícia Federal para a realização de várias diligências, por entender que não havia elementos suficientes para o oferecimento de denúncia contra a ex-ministra.
As diligências foram rigorosamente cumpridas, resultando daí provas inteiramente favoráveis a ela. Nesse contexto, era de esperar que o inquérito fosse arquivado: se inexistiam, antes, elementos para o oferecimento da denúncia, com maior razão inexistiam depois, quando tudo de essencial e insuspeito lhe favorecia.
Mas, inusitadamente, em vez de o inquérito policial retornar à apreciação do procurador-geral, foi encaminhado a um subprocurador da República, que ofereceu inesperada denúncia, imputando à ex-ministra o crime de corrupção passiva, sob a alegação de que o reajuste de tarifas de ônibus era feito de forma irregular para atender aos interesses do chamado "esquema PC".
A seguir (1994), o plenário do STF recebeu a denúncia, acompanhando o voto do relator, ministro Néri da Silveira, que ressaltou não ser aquele um ato de julgamento, porque a decisão final somente seria possível após a coleta de provas. Operou-se, então, a instrução criminal, sendo ouvidas inúmeras testemunhas e nada se comprovando contra a ex-ministra.
O ministro-relator determinou ainda diligência de esclarecimento nos órgãos técnicos relacionados ao fato que se apurava, daí resultando, mais uma vez, prova favorável a ela.
Surpreendentemente, quando se aguardava o julgamento final, o STF cancelou a súmula do foro privilegiado e determinou a remessa dos autos à primeira instância. E para lá foram os 13 volumes e 47 apensos do processo: o que já era do pleno conhecimento do STF passou a ser examinado pela Justiça Federal, que nada conhecia dos autos até então.
Sobreveio, assim, a sentença condenatória, no ano 2000, e, agora (2006), finalmente, em grau de recurso, a alentada decisão absolutória, que exigiu, sem dúvida, esforço sobre-humano dos julgadores, especialmente do relator, desembargador federal Tourinho Neto, ao proferir minucioso e brilhante voto.
Passada a excitação da alegria que sempre comove nessas horas o coração do advogado, relembro não ter abandonado, depois da sustentação oral, a tribuna da defesa, acompanhando de pé, por mais de três horas, os votos proferidos pelos ilustres membros do TRF. E, proclamada a decisão final, tomado de forte emoção, libertei-me da veste talar que ornamentara meus ombros. Dobrei-a carinhosamente e a beijei, num gesto simples e fortuito. Naquele momento, homenageava o manto da defesa: a mais sagrada instituição constitucional dos embates forenses.
Terminava a luta e o sofrimento de 14 anos, mas o império da razão guardava nas suas entranhas o doloroso refluxo da angústia desnecessária: nossa Suprema Corte de Justiça, ao alterar a jurisprudência oficial, após o processo estar pronto para ser decidido, transferindo para outras instâncias judiciais o dever de julgar, olvidou-se de que o destinatário da prestação jurisdicional é sempre um ser humano; esqueceu-se da célebre advertência de Rui Barbosa: "Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta".


TALES CASTELO BRANCO, 70, advogado criminal, presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo, é advogado da ex-ministra Zélia Cardoso de Mello e autor, entre outras obras, de "Teoria e Prática dos Recursos Criminais".

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