São Paulo, quarta, 3 de setembro de 1997.



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A chance perdida de uma nova realeza

Se Charles fez o que pôde, foi sua ex-mulher quem melhor se deu na redefinição do papel da família real


RENATO JANINE RIBEIRO

A morte da princesa Diana é trágica para a família real inglesa, e isso por uma razão bastante simples: ela constituía sua melhor chance de dar um novo papel social a uma dinastia que, ao longo do atual reinado, foi perdendo popularidade justamente porque perdia as funções que havia assumido sob a rainha Vitória.
Sim, porque 160 anos atrás, quando Vitória subiu ao trono, a reputação da realeza estava no seu ponto mais baixo. Seu tio Jorge 4º, que os leitores da Folha conhecem como o príncipe que quer destronar o pai no filme "As Loucuras (sic: o correto é 'a loucura') do Rei George", deu ao país o desastroso espetáculo de uma tentativa de divórcio de sua mulher, Carolina, com intensa lavagem de roupa suja em público. O clamor republicano crescia.
Em meados do século 19, a genialidade de Vitória e de seu marido, o príncipe Alberto, esteve em retirar a realeza da arena política, tornando-a mais ou menos neutra em face dos partidos, e em fazê-la a portadora por excelência dos valores da família.
A moralidade vitoriana é isso: a dinastia se torna a primeira e mais dedicada família do reino, dando aos súditos o melhor exemplo de dedicação, abnegação e mesmo sacrifício. A justificação da monarquia inglesa, e de seu pagamento a alto preço pelos cidadãos (porque é a dinastia mais cara do Ocidente, bem mais que as monarquias da Escandinávia ou da Espanha, mais discretas), estava numa identidade nacional acima dos partidos e baseada na moralidade da família.
Já a crise do reinado de Elizabeth 2ª se deve ao fato de que esses valores perderam muito de seu sentido. Quem, hoje, abrirá mão da felicidade pessoal só para cumprir um papel exemplar? E as virtudes de hoje serão, ainda, as do sacrifício e da contenção? Isso se evidenciou no ano "horribilis" de 1992, quando os três filhos casados da rainha -Charles, Andrew e Anne- se viram separados de seus cônjuges, o que os afastava não só do papel vitoriano como até mesmo da igreja que o monarca chefia e que não admite o divórcio.
Quero alertar, porém, contra o erro de culpar o "egoísmo" dos príncipes, supostamente ávidos de prazeres, pela nova impopularidade da realeza. Na verdade, o problema é que o ideário do século 19 não faz mais sentido. O formato vitoriano não convém à nossa sociedade. As virtudes de hoje não podem ser inimigas da realização amorosa e sexual. E eu até diria: devem somar a realização pessoal e a solidariedade para com os desvalidos.
A seu modo, Charles e Diana tentaram esse novo papel -que, curiosamente, levou-os a conflitos discretos com o partido conservador. A preocupação do príncipe com os pobres irritou, em seu tempo, a primeira-ministra Margaret Thatcher. E a última declaração pública da princesa Diana, aplaudindo a iniciativa trabalhista de apoiar a proibição das minas terrestres, indignou a direita, que quando esteve no poder se recusou a dar esse passo, que teria salvo milhares de vidas.
Mas, se Charles fez o que pôde, foi sua ex-mulher quem melhor se deu na redefinição do papel da família real. A princesa Diana foi exemplar no apoio a crianças sofridas, aidéticos, mutilados. Tivesse vivido, talvez conseguisse combinar esse novo papel exemplar com os privilégios de mulher rica e princesa e com um segundo casamento.
Contudo, penso que a tragédia da família real talvez não tenha sido a morte de Diana. Talvez já estivesse no fato de que as chances de reciclar a realeza britânica dependiam da "outsider", da rejeitada, da mal-amada -e, agora, mártir. Alguém será capaz, nos próximos anos, de realizar essa redefinição da realeza que Diana esboçou antes de ser repudiada? Isso ficou para a próxima geração. Se um de seus filhos tiver uma mulher com suas qualidades, quem sabe. Senão, a "firma", como os "royals" se referem a si mesmos, pode ter os dias contados.
Renato Janine Ribeiro, 47, é professor titular de ética e filosofia política da USP (Universidade de São Paulo) e autor de "A Última Razão dos Reis -Ensaios de Filosofia e Política" (Companhia das Letras).





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