São Paulo, segunda-feira, 03 de setembro de 2001

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VINICIUS TORRES FREIRE

Vida de negro

SÃO PAULO - No "ano de Zumbi", em 95, ao fim de uma entrevista com dois militantes do Movimento Negro Unificado, perguntei se me consideravam negro. Sou da cor da maioria dos brasileiros, um tom qualquer do dégradé moreno que o IBGE classifica como "pardo", essa palavra pavorosa, que me lembra papel de embrulho ou a cor do burro quando foge.
De um dos militantes, o mais simpático, ouvi que eu era negro. Do outro, que era branco. Quem seriam os negros com direito a cotas, a lugares reservados na universidade, nos empregos, na televisão, caso se adotasse tal tipo de programa de ação afirmativa? Aqueles com certificado de negritude do IBGE, por terem se declarado negros no último Censo?
A questão não é gaiata. As cotas, o mais óbvio e midiático dos programas de ação afirmativa, suscita enormes se não absurdos problemas práticos. Mas domina a cena quando outra vez o racismo se torna moda fugaz de debate, como agora, por conta da reunião da ONU.
Parece mais ou menos provado que negros ganham menos e pulam menos degraus sociais que pessoas de co res outras e competências iguais. Mas não tanto menos que os ditos "pardos", de modo que, pelas estatísticas, quase metade do Brasil precisaria de um programa de ação afirmativa, o que não faz sentido.
Decerto os brasileiros mais negros padecem mais nas cadeias, têm sua auto-estima massacrada pelo nosso racismo cordial (o que prejudica o desempenho escolar, por exemplo), são humilhados nos cercados da classe média, estão postos em miséria e ignorância desde que se decretou o fim da escravidão etc.
Talvez o incremento do número de negros (ou de pessoas com "cor de pobre", "morenos"?) médicos, estrelas de novela, ministros, venha a alterar valores. Mas talvez não. E qual seria o efeito prático? É difícil imaginar ações afirmativas que sejam muito mais que gotas no mar da miséria negra e "parda". Racismo é problema. Mas como lidar com ele sem a reforma social que o país jamais teve?



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