São Paulo, sexta-feira, 03 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A tartaruga e o leão

SÉRGIO RENAULT

Recente pesquisa realizada pelo Ibope a pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), sobre a "Imagem do Poder Judiciário", apresenta conclusões importantes. Dentre elas, chama atenção a de que, aos olhos da população, "a imagem do Judiciário é de uma caixa-preta, misteriosa, pouco acessível ao indivíduo comum e que contém segredos que apenas seres especiais (os juízes) podem decodificar".
Essa é a visão que a população tem do Judiciário e isso não é bom para o país. O olhar distante e desconfiado do cidadão não contribui para o melhor funcionamento do Judiciário. Melhor seria termos um Judiciário mais conhecido, mais transparente, mais acessível e compreensível aos cidadãos. Esse é o primeiro grande desafio que enfrentamos na discussão sobre a reforma do Judiciário.
Não é tarefa fácil. A própria complexidade da estrutura do Judiciário em nosso país contribui para que seja difícil compreender seu funcionamento. Temos aqui diversos judiciários -a Justiça Comum (estadual), a Justiça Federal, a Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral, a primeira e segunda instâncias, os tribunais superiores, os juizados especiais e um emaranhado de legislações que regulamentam suas atribuições e organização, atribuindo-lhes razoável grau de autonomia. Cada uma dessas estruturas possui seus juízes, seus cartórios, seu enorme volume de processos, poucos recursos financeiros e materiais e uma burocracia irracional paralisante.


O olhar distante e desconfiado do cidadão não contribui para o melhor funcionamento do Judiciário


A ausência de informações consistentes sobre o Poder Judiciário, aliada à resistência de alguns setores guiados por uma visão conservadora e atrasada a respeito do papel do servidor e dos serviços públicos, torna o desafio ainda mais longe de ser alcançado. A nossa falta de tradição republicana em discutir profunda e amplamente as instituições públicas acaba por transformar qualquer tentativa de descortinar a realidade em iniciativa irresponsável e temerária.
O conhecimento do Judiciário é condição necessária para a melhoria da prestação jurisdicional, para o desenvolvimento do país e o fortalecimento da nossa democracia. Bom para o país que existam setores interessados em fazer essa discussão pública, abrir as informações, analisá-las em profundidade e propor medidas para a melhoria do sistema judicial.
A Secretaria de Reforma do Judiciário acaba de divulgar o "Diagnóstico do Poder Judiciário", relatório no qual apresenta dados globais sobre todo o sistema judicial brasileiro, especificamente no que diz respeito a número de juízes, volume de processos, produtividade do sistema judicial, custo da Justiça, salários de juízes, estruturas do Judiciário e processos de modernização de gestão já implementados. Trata-se de trabalho inédito no país, realizado a partir de informações coletadas no próprio Poder Judiciário e no Banco Mundial.
Logo que foi divulgado, o diagnóstico recebeu críticas de associações de juízes e dirigentes da magistratura, contestando os dados utilizados. Estamos abertos para debater formas de aperfeiçoamento do diagnóstico. Reafirmamos, contudo, que só utilizamos dados oficiais do próprio Judiciário. Acreditamos que a divulgação do trabalho cumpriu seu primeiro objetivo -provocar a discussão sobre a necessidade de se ter mais conhecimento sobre o Poder Judiciário.
Algumas conclusões do diagnóstico parecem-nos inafastáveis: o verdadeiro gargalo do sistema judicial encontra-se na Justiça Estadual de primeira instância e para lá devem ser direcionados os recursos e esforços de todos; os juizados especiais são o mais importante instrumento de ampliação do acesso das pessoas de baixa renda ao Poder Judiciário; é necessário rever o sistema de recursos regulamentado pelos códigos de processo civil e penal; há um grande volume de dinheiro público destinado ao sistema judicial (em comparação com os outros países), mas há irracionalidade no seu gasto; é necessário verificar as razões das enormes diferenças de produtividade dos juízes nos diversos Estados brasileiros; o sistema judicial carece de maior organização e planejamento de suas atividades, o que confirma a necessidade de criar (como previsto no projeto de emenda constitucional em tramitação no Senado) o Conselho Nacional de Justiça, que deverá se incumbir dessa atribuição.
Nos últimos dias, o ministro Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal, anunciou a disposição do próprio Judiciário em realizar seu diagnóstico. A nós só cabe aplaudir tal iniciativa, que, certamente, contribuirá para o aprofundamento do debate público.
Na realidade, quanto mais estudos e diagnósticos forem realizados, mais próximos estaremos da situação desejada por aqueles que querem um Judiciário mais conhecido, transparente, forte e acessível. Só assim afastaremos a imagem que a população brasileira tem do Judiciário -conforme conclusão da pesquisa encomendada pela AMB, a de uma tartaruga -lento, experiente e que se protege e se esconde no casco- ou de um leão -poderoso e perigoso, com autoridade.

Sérgio Rabello Tamm Renault, 45, advogado, é Secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.


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