São Paulo, sexta-feira, 03 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Thales "Diálogo" Ramalho

RONALDO COSTA COUTO

Começamos a conversar no final do regime autoritário. Thales Ramalho, movimentada ponte entre a democracia que parecia possível e a ditadura que ameaçava não acabar. Eu, da equipe de seu amigo Tancredo Neves, governador de Minas, cujo primeiro compromisso era com a liberdade.
Thales teve papel importante no jogo da abertura política e na democratização. Soube negociar, avançar e esperar, jogar com o tempo e as circunstâncias. Entendeu que a transição, para ser eficaz e pacífica, tinha de ser feita mais com os militares do que contra eles. Sarney: "Ele serviu de ponte entre todas as correntes políticas existentes".
Ele é delicadeza, inteligência, discrição, fina ironia, suavidade de gestos e voz, olhos e olhar de estrategista. Um liberal de coração, tancredianamente hábil, moderado e conciliador, pragmático e objetivo, democracia na ponta da língua. Um craque da costura política, do diálogo, do entendimento e da negociação. Elegante, astuto, equilibrado, grande conversador e articulador. Era considerado excelente fonte jornalística. Passava informações, jogava com elas. Só não é um bom político mineiro na geografia. Frase dele, apontando uma saída política, voz baixa, quase cochichando: "Juntar a direita da esquerda com a esquerda da direita". E ao deixar o Congresso: "Afasto-me da política, não da cidadania".
Cultor de literatura, leitor voraz de Machado de Assis, Eça de Queirós, Neruda, Bandeira, Drummond, Joaquim Cardoso, Fernando Pessoa, Garcia Lorca, Murilo Mendes, Baudelaire, Rimbaud. Recitava muitos trechos e poemas inteiros deles.


Sabia conviver com todos, transitava fácil. Era excelente leitor de corações e cabeças. Principalmente dos políticos


De que falávamos nós naqueles tempos? Transição política, Nordeste e Minas, poder militar, muito sobre Ulysses e Tancredo, da candidatura e campanha presidencial que levou o Brasil, o são-joanense e seu vice, José Sarney, à vitória no Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985. O que nos movia? Mais que tudo, sonho e esperança.
Muitos anos depois, já fora do poder e dentro da democracia, perguntei:
"Aqui entre nós, Thales, você acha que, se as Diretas-Já tivessem passado, o doutor Tancredo tentaria o Planalto pelo PMDB ou deixaria para o Ulysses?"
"Ele não teria nenhuma dúvida! Ele se preparou a vida inteira para isso. Não fazia nada conflitante com isso. O que convenceu o doutor Tancredo a se candidatar ao Senado por Minas em 78 foi a candidatura à Presidência. Ele era muito condicionado por ela. E isso era absolutamente legítimo, não é? Ele já tinha sido tudo no país."
Amigo do marechal Cordeiro de Farias, ligações com o ministro Golbery, próximo de Ulysses, de Tancredo, de Sarney, a quem conheceu em 1947. Sabia conviver com todos, transitava fácil. Era excelente leitor de corações e cabeças. Principalmente dos políticos. Um exemplo? Sobre o engenhoso e estranho jogo de poder entre os dois grandes chefes do PMDB: "Tancredo Neves e Ulysses Guimarães são parceiros em uma dança muito singular, cujos passos só os dois conhecem. Quem tenta entrar no meio, acaba tropeçando".
Acertou na mosca. Muitos tropeçaram, deram pisões, desafinaram, atravessaram. Em 21 de abril de 1987, na sessão de homenagem da Assembléia Nacional Constituinte à memória de Tancredo, o bom e destemido doutor Ulysses abriu o jogo e a alma de poeta: "Tancredo também foi um bruxo. Ninguém resistia à sua sedução. Hipnotizado pelo seu sortilégio, presto meu depoimento sobre o convívio contraditório que tivemos -eu amava, admirava e temia Tancredo".
Na manhã de 15 de março de 1995, telefono para Thales e peço que esprema o doutor Tancredo numa frase curta. Resposta, de bate-pronto: "Tancredo era um sábio". Agradeci. À tarde me liga: "Preciso corrigir a frase. Por favor, troque o era por é. Tancredo é um gênio". Sábia sutileza. Para o senador Marco Maciel, outro político mineiro de Pernambuco, ele foi um dos políticos mais talentosos de seu tempo.
Em 1979, com Tancredo Neves e Magalhães Pinto, funda o Partido Popular, de perfil liberal-conservador, abatido pelo governo militar no início de 1982. Filia-se ao PDS, segue lutando pela abertura, inclusive pela anistia política. Apóia e participa da campanha presidencial de Tancredo Neves. Em 1985, filia-se ao Partido da Frente Liberal. Nomeado ministro do Tribunal de Contas da União, aposenta-se em maio de 1988 e assume cargo de assessor especial do presidente José Sarney.
Usou cadeira de rodas a partir de 1976, devido a seqüelas de derrame cerebral, depois agravadas por acidente de automóvel. Emigrou deste mundo em 15 de agosto passado, na mágica Recife, aos 81 anos. Parada cardiorrespiratória. Deixa a filha Ana Clara, do casamento com Rosália Santos, duas netas e a doce Helena Ramalho, com quem era casado havia 35 anos.
Thales Ramalho era diálogo. Perdão: Thales Ramalho é diálogo.
P.S. - O jornalista Carlos Chagas garante que ele tinha mais de cem cadernos escolares com anotações sobre o que ouviu, falou e fez na vida política. Onde estará esse tesouro?

Ronaldo Costa Couto, 61, escritor, doutor em história pela Sorbonne (França), foi ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República (governo Sarney).


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