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São Paulo, sexta-feira, 03 de outubro de 2003

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JOSÉ SARNEY

O século e o frango assado

O presidente Lula sancionou o Estatuto do Idoso. Quando da sua votação, alertei para o fato de que, no Senado, muita gente estava votando em causa própria, como eu mesmo. A Constituição de 1988 dava ao idoso o direito de passar na frente dos outros em fila. Velho não tem mais tempo de esperar. É uma das raras vantagens da idade. Eu tenho três privilégios: um, idade; outro, de condecoração, e outro, pelo nascimento. Como idoso, não entro em fila e não pago ônibus; como detentor da Legião de Honra da França, criada por Napoleão, não pago metrô em Paris e, como cidadão maranhense, recebi de dom João 4º -porque expulsamos os holandeses do Maranhão- o direito de ter as mesmas vantagens dos cidadãos do Porto que lutaram pela Restauração: "poder entrar em Lisboa, capital do Reino, montado em besta e de espada embainhada". São honras e mercês que Deus me deu e pelas quais rezo todo dia, sem falar na maior, a graça da vida e do destino que me concedeu.
Mas eu quero falar mesmo é do balanço que foi publicado nestes dias sobre o desempenho do Brasil no século 20.
O Estatuto do Idoso não permite maus-tratos a pessoas velhas, pune quem assim proceder; diz-se que é feio maltratar mulher e, pior ainda, bater em idoso. Este Brasil, ancião de 500 anos, tem apanhado muito. Criou-se o esporte nacional de bater nele. Diz-se o diabo do Brasil. Tudo é ruim e não dá certo. Houve um tempo em que se fazia proselitismo para deixá-lo. Era tanta a pancadaria que cunharam o slogan do "Ame-o ou deixe-o". A verdade é que o Brasil aguentou tudo: a ingratidão de filhos e a maldição de concorrentes.
Agora, vem o balanço do desempenho do Brasil no século passado e, espantando as carpideiras, vem a surpresa de que fomos o país que, com a Coréia do Sul, mais cresceu no mundo. Hoje, somos a 15ª economia mundial. Recordo com saudade que, durante o meu governo, éramos a oitava.
Ficamos mais ricos, com maior nível de educação, com infra-estrutura moderna, grande civilização industrial. Em 1900, 65% da população era de analfabetos; hoje são 13%. Poderíamos estar com zero, mas vamos chegar lá. A expectativa de vida em 1900 era de 33 anos. Quando fui governador no Maranhão, era de 29 anos (!). Hoje é de 68,6 anos. Eu já passei dessa marca, sou um sobrevivente dos anos de 1930.
Mas, no nosso velho estilo de malhar o país, o noticiário ressalta o negativo e esquece o grande salto. As manchetes resumem esses cem anos como "o século da desigualdade".
Certa vez, em Lisboa, perguntei a um chofer como ia o país. Ele respondeu-me: "Portugal vai bem, mas esses gajos só ficarão satisfeitos quando chover frango assado. E nunca pode chover frango assado, não é mesmo, seu doutor?".
Consolidamos uma grande cultura, popular e erudita, como marca de identidade. Construíram-se museus por toda parte, universidades, escolas. Há 30 anos, não tinha a classe pobre onde tomar uma injeção. Estava entregue à caridade das santas casas. Hoje, a saúde é universal, temos salário mínimo, garantias individuais, direitos sociais e somos a segunda democracia do mundo ocidental. Temos desigualdades e desemprego, temos. A educação não vai como desejávamos e a dívida vai pior ainda. De mais longe já viemos.
O relatório do IBGE tem um defeito -e grave. Não diz que, em 1900, não tínhamos o Flamengo, o Corinthians, o Pelé e o Joãosinho Trinta para fazer esse Carnaval dos diabos e das moças bonitas. Viva o Brasil -e ponto.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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