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São Paulo, sexta-feira, 03 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Por fora, bela viola

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Sob o título "Álcool e as mudanças climáticas" (Folha, pág. A3, 25/9), artigo do prof. José Goldemberg relembra e advoga em favor de um projeto que já teria sido aprovado pelo Congresso Nacional.
De acordo com o atual secretário do meio Ambiente do Estado de São Paulo, a Alemanha forneceria R$ 100 milhões para que o Brasil aumentasse em 100 mil unidades a sua frota de carros movidos a álcool. Com isso, a Alemanha ganharia as "indulgências" relativas a 2 milhões de toneladas de carbono que não seriam lançadas na atmosfera nos próximos dez anos. O incentivo seria de R$ 1.000 para cada comprador do veículo. Diz o prof. Goldemberg que, com esse projeto, ganham o produtor de álcool, com a expansão da produção, o comprador, que recebe um desconto de R$ 1.000, e o fabricante de automóveis, com a redução do IPI.
Parece que alguma coisa não fecha nessa equação. É bom lembrar que na economia também vale a Primeira Lei da Termodinâmica. Da mesma maneira como acontece com a energia, impera a "Lei de Conservação da Grana", o que, em linguagem corrente no Brasil, significa: "there is no free lunch". Se a Alemanha entra com R$ 1.000 por carro vendido e o comprador fica com R$ 1.000, só há uma maneira de o fabricante também ganhar. É que alguém saia perdendo.
A interessante análise do prof. Goldemberg omite, entretanto, o outro lado da moeda: o que tem o Brasil a perder com esse projeto.
Adequadamente, lembra o comentarista o enorme potencial para a exportação que representa o álcool brasileiro -que, de fato, não tem competidor de relevância econômica no mercado internacional. Em face da contingência representada pelo Protocolo de Kyoto, a Alemanha teria de importar em dez anos o equivalente de álcool que estariam consumindo os 100 mil carros movidos a esse combustível no Brasil. E não importa se, para isso, estivesse se valendo de álcool anidro como aditivo à gasolina ou de álcool hidratado como combustível.



O projeto de "gorjeta ecológica" da Alemanha é um artifício para burlar o espírito do Protocolo de Kyoto

Ou seja, usando o mesmo modelo, o Brasil, com a confirmação desse projeto, deixaria de exportar 200 milhões de litros de álcool por ano. Em dez anos, seriam R$ 2 bilhões (a R$ 1 o litro do álcool), que devem ser comparados com os R$ 100 milhões que despenderia a "generosa" Alemanha, se for efetuada pelo Executivo nacional a proposta defendida pelo eminente secretário.
Haverá, por certo, outras maneiras de a Alemanha realizar suas compras de indulgências ecológicas. Poderá reintroduzir o fogão a lenha, uma dessas tecnologias apropriadas profetizadas pelo nosso Ministério da Ciência e Tecnologia. Ou, como auspiciava o saudoso ministro Cezar Cals, de Minas e Energia, usar titica de galinha para produzir por fermentação anaeróbia o gás metano -que, em última análise, provém de fotossíntese e, portanto, não contribui para o efeito estufa.
Mas é pouco provável que outra solução mais econômica que o uso do etanol seja encontrada. E, nessas condições, talvez mais valham 20 pombas voando (voando baixo, porém) do que uma na mão, pois essa é a relação custo/beneficio que está incorporada na proposta em questão. Mesmo porque esse é um setor que possivelmente encontrará menos resistência no mercado da União Européia para rompimento de barreiras para importação de produtos agrícolas.
Em primeiro lugar, porque o álcool brasileiro substituirá derivados de petróleo importado e não interferirá com os poderosos lobbies de agricultores e da agroindústria lá existentes. Em segundo lugar, porque há hoje uma sólida aspiração conservacionista e mesmo de autopreservação na Europa -principalmente na Alemanha. Basta lembrar os 2.000 mortos de calor neste ano na França, as inundações na Alemanha e na Polônia, os estragos do fenômeno climático denominado El Niño etc., que, corretamente ou não, vêm sendo atribuídos ao efeito estufa.
Além do mais, o projeto de "gorjeta ecológica" da Alemanha é um artifício para burlar o espírito do Protocolo de Kyoto, que pressupõe que cada país inicie um esforço próprio de conscientização conservacionista, e não que venha a subornar um país carente para que este realize o sacrifício formal, enquanto o rico continua sua progressão poluidora.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 71, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.


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