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São Paulo, terça-feira, 04 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Nova legislatura, velha distorção

RUY ALTENFELDER

Dentre todas as reformas insistentemente reclamadas pelos brasileiros, a política é uma das mais necessárias e urgentes, para que corrija determinadas distorções, incompatíveis com o avanço da democracia no país. O início de uma nova legislatura no Congresso evidencia uma das mais graves distorções políticas nacionais: a proporcionalidade inadequada das bancadas na Câmara em relação à população de cada Estado. O problema impede a representação parlamentar efetiva, equilibrada e em sintonia mais fina com anseios e necessidades da sociedade.
Há grave distorção da democracia quando a própria etimologia da palavra é subvertida na prática, conferindo-se pesos diferentes ao voto de cidadãos residentes em Estados distintos. Cria-se a figura do eleitor de segunda classe. Ou seja, é a institucionalização de um procedimento tão politicamente incorreto quanto quaisquer atos de discriminação de pessoas, religiões, sexo e ideologia.
Nas eleições de 2002, foi fácil perceber essa questão. Na votação para os cargos majoritários, o voto de cada brasileiro teve mesmo peso e poder de decisão. Isso não ocorreu na votação proporcional para deputados federais, em que o voto do eleitor paulista, por exemplo, valeu menos do que o do Amapá. A matemática confere claríssima evidência a essa afirmação: São Paulo tem 24.263.612 eleitores e bancada de 70 deputados federais, ou seja, 1 parlamentar para cada 346.623 eleitores. O Amapá tem 250.077 eleitores e oito deputados federais, ou seja, relação de 1 para 31.259.
Ou seja, nas importantes deliberações da Câmara, o voto do eleitor paulista vale a undécima parte do voto do eleitor do Amapá. Nada contra o Estado amazônico ou a favor de São Paulo. É só um exemplo real de um problema que prejudica boa parte das unidades federativas, ferindo o conceito da representatividade política, um dos pilares da democracia.


É prioritário estabelecer a justiça na representação proporcional na Câmara, para que o eleitor exerça sua legítima autoridade


Para evitar equívocos, é importante deixar claro que o número de três senadores por unidade não entra nessa conta, pois o Senado é a representação política dos Estados. A Câmara, ao contrário, atua em nome da população. O número fixo de senadores garante a equidade de direito entre os Estados. A Constituição faz clara distinção entre as duas Casas do Congresso.
Assim, há atribuições e prerrogativas de todo o Congresso, há aquelas privativas da Câmara e existem as da alçada exclusiva do Senado. Nesse aspecto, seria interessante rever algumas dessas atribuições. O Senado deveria ter competências exclusivas sobre questões pertinentes ao relacionamento jurídico e institucional entre Estados e União. Caberia à Câmara debater temas ligados aos interesses diretos da sociedade. É matéria jurídico-legislativa complexa, mas que terá de ser analisada em profundidade, para que o Parlamento possa estar estruturado e atuar próximo de um regime ideal.
Prioritário, contudo, é estabelecer a justiça na proporcionalidade da representação das unidades federativas na Câmara, possibilitando que todo o povo exercite de forma equânime a sua legítima autoridade. Essa situação é análoga à verificada em clubes e instituições da sociedade civil, nos quais também não se observava a justiça na estrutura da representatividade. Eleições recentes em clubes, mesmo naqueles com milhares de associados, têm demonstrado como é nociva a ausência de proporcionalidade na representação política. Em algumas agremiações, prevalece um sistema de quase ditadura de grupos.
Felizmente, o novo Código Civil corrigiu essa distorção nos clubes e entidades do gênero, estabelecendo eleições diretas, com o voto de todos os associados. Talvez esse avanço da sociedade civil sensibilize os parlamentares e o governo. É insensato impor à maioria o que é melhor para a minoria.
A democracia afasta-se de sua essência à medida que o poder de legislar torna-se mais concentrado. Neste momento em que o Brasil deve avançar, solucionar seus problemas e participar de forma soberana da nova ordem econômica mundial, é preciso extirpar velhos equívocos políticos. E isso significa estabelecer com clareza e valorizar a autoridade dos cidadãos, em cujo exercício não pode haver quaisquer privilégios.

Ruy Martins Altenfelder Silva, advogado, é presidente do Instituto Roberto Simonsen. Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo.


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