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São Paulo, terça-feira, 04 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um novo estilo de governo

BETTY MILAN

Numa das suas crônicas, João Ubaldo Ribeiro diz que o clima atual do Brasil não se explica pela ascensão social de um pau-de-arara a presidente da República, ou seja, pela demonstração de que somos um país onde quem tem competência pode chegar a limites insuspeitos. Verdade. O clima se explica, enfim, por nós gostarmos de ser brasileiros. Isso decorre do estilo do governo atual.
Enumero as novidades desse estilo:
1) A relação com a palavra é diferente. Ela tem um peso que nunca teve. Assim, Lula vale-se do verbo para despertar as forças que permitem compensar a falta de verba. Assim, no dia da posse, José Dirceu introduziu a palavra revolução no discurso oficial, dizendo que fazia questão de usá-la. Levou-nos a refletir sobre o que significa uma revolução sem derramamento de sangue e um país onde isso é possível.
2) O discurso do presidente goza de maior credibilidade, porque Lula está comprometido com a palavra dada, como mostra a viagem com os ministros, que ele fez para cumprir uma promessa de campanha.
3) A poesia está no ar. Ao dizer, no seu discurso, que nós precisamos ter paciência e perseverança, Lula acrescentou que "uma longa caminhada começa pelos primeiros passos","não se pode colher os frutos antes de plantar as árvores", "a nossa alegria é maior do que a nossa dor" e "a nossa esperança é maior do que o medo". A poesia ecoou, e a palavra mutirão, de que o presidente se valeu ao convocar os presentes e os telespectadores para um grande mutirão contra a fome, soou como nunca antes.
4) A relação com a lei é nova. Prova disso é o programa de regularização fundiária, a transformação de áreas invadidas em bairros, com infra-estrutura e lotes regularizados e registrados em cartório. O programa implica a desqualificação de uma lei injusta e, no mesmo ato, transforma milhares de posseiros em proprietários. Os moradores das nossas 3.905 favelas, além de não estarem fora da lei, podem tornar-se defensores delas. Assim, estarão menos propensos ao crime.
5) A noção de criminalidade se ampliou. O presidente disse que é preciso dizer não à corrupção, à sonegação e ao desperdício. Isso significa que desperdiçar tempo é um crime -a mentalidade de funcionário público precisa ser superada. Ninguém poderá prevalecer-se impunemente da garantia de emprego para trabalhar.
6) A relação com a política é nova. Lula está em campanha permanente. Com isso, ensina que o presidente não deve se fechar no Planalto. Indica um caminho novo para todos os profissionais do país. Convida o professor, o engenheiro, o advogado, o médico, o psicanalista a saírem da universidade, do escritório ou do consultório e verem o que acontece fora desses lugares. Incita os especialistas a se especializarem no Brasil.


Somos o povo que passou à esquerda sem derramar sangue e que precisa cumprir a sua "grande missão planetária"


7) A política não exclui o inconsciente. O inconsciente não obedece o princípio da não-contradição. Lula também não. Vai tanto a Porto Alegre quanto a Davos. Por isso disse no discurso de posse que "a nação é contraditória, mas não é contrária a si mesma". Assim a tendência do governo é de praticar a inclusão: "Toda migração é bem-vinda, porque todo migrante se transforma em mais um brasileiro".
8) A política tornou-se surpreendente. Ou seja, do interesse de todos. Tão surpreendente que, durante a posse, um dos cavalos dos Dragões da Independência caiu, derrubando o cavaleiro.
9) A relação com a realidade mudou. Enxergá-la é um imperativo. O presidente sabe que os ministros conhecem a nossa realidade, mas fez questão do "olho no olho" com a pobreza, por saber que podemos ser vítimas da recusa inconsciente de um fato.
10) O erro em público se tornou admissível. Durante a viagem com os ministros, Lula apresentou o da Saúde dizendo que ele seria ministro. Depois se corrigiu, acrescentando que já o era, pois as eleições estavam ganhas. Capitalizou o erro, revelando o quão surpreendente a vitória é para ele. Ganhou sendo humilde. Como Carlito Maia, um dos fundadores do PT, Lula sabe que a perfeição não é deste mundo. Como Oswald de Andrade, ele poderia falar na contribuição milionária de todos os erros.
11) Lula valoriza a verdade e a prudência. Afirmou: "Quando não puder, direi que não posso". Comprometeu-se com a verdade, mas deu a entender que ela precisa ser dita de maneira prudente e que a forma de se comunicar com a nação é decisiva. Ao reunir pela primeira vez todos os ministros, declarou que a situação do país não é boa e acrescentou: "A gente vai descobrir coisas que ainda não apareceram na transição -e, obviamente, cada vez que descobrirmos, teremos de pensar como comunicar à nação- porque, se não comunicarmos corretamente, seremos culpados pelos erros que os outros cometeram".
12) A aceitação do erro e o compromisso com a verdade e a prudência tornam a falta de solidariedade inconcebível. O ministro Ciro Gomes declarou que "o país está numa situação difícil, e toda pessoa de bem tem de colaborar". A prevenção consequentemente se impõe. Ciro prometeu reestruturar a defesa civil para prevenir catástrofes causadas por chuvas. A promessa revela mudança no nosso imaginário.
13) Nós temos consciência de quem somos. Somos o povo que passou para a esquerda sem derramamento de sangue ou ressentimento. Que precisa cumprir a sua "grande missão planetária". Quase um terço da população vive abaixo do nível de pobreza, mas acreditamos - por causa de nossa auto-estima- que isso não irá perdurar.
14) Já não vivemos perdidos no mapa-múndi do Brasil. "A democratização no plano internacional é tão importante quanto no plano interno", falou Lula no seu discurso de posse, antes de sugerir que a crise do Oriente Médio seja resolvida pacificamente e pela negociação. O mundo agora nos concerne tanto quanto o Brasil.

Betty Milan, escritora e psicanalista, é autora de "O Clarão" e "A Paixão de Lia", entre outros livros.


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