|
Próximo Texto | Índice
Vida de pingüim
Enquanto a luta darwiniana pela sobrevivência impera no cenário político, a marcha do governo Lula vacila
DO ALTO de seu inabalável bom humor, a que
se acrescentava algum
toque de autocongratulação, Fernando Henrique
Cardoso declarou certa vez que
não julgava especialmente difícil
exercer o cargo de presidente da
República.
Sem atingir os níveis do otimismo cardosiano, o presidente
Lula estava por certo num estado
de espírito ensolarado quando
comentou, num café da manhã
com jornalistas, que "ser pingüim é muito difícil" e que "é
mais fácil ser gente".
Cabe contextualizar a observação. Foi inspirada pelo documentário francês "A Marcha dos
Pingüins", a que o presidente assistiu recentemente em DVD.
Não é invejável, com efeito, a
sorte dos pingüins-imperadores,
tal como foi exposta no filme de
Luc Jacquet. Essa infeliz espécie
de bípedes da Antártida atravessa, numa marcha anual e épica,
vastas extensões do continente
gelado para cumprir seu ciclo
reprodutivo.
Comovido com o filme, o presidente da República entregou-se
a considerações sentimentais sobre "a desagregação da sociedade
a partir da família" -os pingüins
seriam mais tradicionalistas que
os humanos neste aspecto- e
manifestou o desejo de "dar um
beijo" no cineasta.
A obra de Jacquet é de fato
emocionante, mesmo para quem
não queira incidir na interpretação, tão ao gosto conservador,
em que Lula se aventurou.
Os pingüins-imperadores tudo
fazem para que seus ovos não encostem no solo: o mais breve
contato da casca com o terreno
gelado interromperia o desenvolvimento do embrião.
É assim que o macho da espécie, hiperalimentado durante os
meses de temperatura mais
amena, acumula suficiente massa corporal para abrigar o ovo
durante o inverno, segurando-o
entre as patas -o que lhe dificulta, obviamente, o movimento.
Mais fácil ser gente, sem dúvida. Mesmo se quiséssemos, de
resto, não teríamos alternativa:
na biologia, como também acontece na política, predominam as
artes do possível.
Mas é neste campo -o da política- que o presidente Lula talvez tenha avaliado incorretamente a sua própria condição.
Vê-se obrigado a manter, em sua
vacilante marcha, um número
excessivo de ovos sob o calor e a
proteção da máquina estatal.
Incapazes de sobreviver ao
contato da terra nua, partidos e
facções os mais diversos disputam lugares no futuro ministério. Do PP de Paulo Maluf ao PT
de Marta Suplicy, amontoam-se
todos, como podem, debaixo do
pingüim-imperador.
Alguns ovos -se se sustenta a
metáfora-, incham desmesuradamente: o PR, resultado da tosca engenharia genética que fundiu o PL e o Prona, conhece adesões em massa, ao passo que um
partido como o PFL, órfão do poder, desvitaliza-se a olhos vistos.
É a dura luta pela sobrevivência. Enquanto isso, o governo Lula mal consegue andar em frente.
Tem um longo caminho até o fim
do mandato, contudo. Não é fácil, repita-se, a vida de pingüim.
Próximo Texto: Editoriais: Novos controles Índice
|