São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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Vida de pingüim

Enquanto a luta darwiniana pela sobrevivência impera no cenário político, a marcha do governo Lula vacila

DO ALTO de seu inabalável bom humor, a que se acrescentava algum toque de autocongratulação, Fernando Henrique Cardoso declarou certa vez que não julgava especialmente difícil exercer o cargo de presidente da República.
Sem atingir os níveis do otimismo cardosiano, o presidente Lula estava por certo num estado de espírito ensolarado quando comentou, num café da manhã com jornalistas, que "ser pingüim é muito difícil" e que "é mais fácil ser gente".
Cabe contextualizar a observação. Foi inspirada pelo documentário francês "A Marcha dos Pingüins", a que o presidente assistiu recentemente em DVD.
Não é invejável, com efeito, a sorte dos pingüins-imperadores, tal como foi exposta no filme de Luc Jacquet. Essa infeliz espécie de bípedes da Antártida atravessa, numa marcha anual e épica, vastas extensões do continente gelado para cumprir seu ciclo reprodutivo.
Comovido com o filme, o presidente da República entregou-se a considerações sentimentais sobre "a desagregação da sociedade a partir da família" -os pingüins seriam mais tradicionalistas que os humanos neste aspecto- e manifestou o desejo de "dar um beijo" no cineasta.
A obra de Jacquet é de fato emocionante, mesmo para quem não queira incidir na interpretação, tão ao gosto conservador, em que Lula se aventurou.
Os pingüins-imperadores tudo fazem para que seus ovos não encostem no solo: o mais breve contato da casca com o terreno gelado interromperia o desenvolvimento do embrião.
É assim que o macho da espécie, hiperalimentado durante os meses de temperatura mais amena, acumula suficiente massa corporal para abrigar o ovo durante o inverno, segurando-o entre as patas -o que lhe dificulta, obviamente, o movimento.
Mais fácil ser gente, sem dúvida. Mesmo se quiséssemos, de resto, não teríamos alternativa: na biologia, como também acontece na política, predominam as artes do possível.
Mas é neste campo -o da política- que o presidente Lula talvez tenha avaliado incorretamente a sua própria condição. Vê-se obrigado a manter, em sua vacilante marcha, um número excessivo de ovos sob o calor e a proteção da máquina estatal.
Incapazes de sobreviver ao contato da terra nua, partidos e facções os mais diversos disputam lugares no futuro ministério. Do PP de Paulo Maluf ao PT de Marta Suplicy, amontoam-se todos, como podem, debaixo do pingüim-imperador.
Alguns ovos -se se sustenta a metáfora-, incham desmesuradamente: o PR, resultado da tosca engenharia genética que fundiu o PL e o Prona, conhece adesões em massa, ao passo que um partido como o PFL, órfão do poder, desvitaliza-se a olhos vistos.
É a dura luta pela sobrevivência. Enquanto isso, o governo Lula mal consegue andar em frente. Tem um longo caminho até o fim do mandato, contudo. Não é fácil, repita-se, a vida de pingüim.


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