São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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O lado avesso da pele


Deus impregna o lado avesso da pele e anseia fluir por todo o corpo, de modo a fazer de nós seres vitalmente pascais


FREI BETTO

Uma das características da pós-modernidade é a redução da cultura a mero entretenimento, com a exacerbação dos sentidos, em detrimento da razão e do espírito. Para estimular o consumismo, utilizam-se como isca recursos capazes de nos fazer sentir mais e pensar menos. Isso vale para a publicidade, para certos programas televisivos e até para rituais religiosos.
Dissemina-se uma cultura centrada no epidérmico, na qual há mais estética que ética, mais nádegas que cabeças, mais urros que melodias, mais ambições que princípios, mais devaneios que utopias. Tudo é aqui e agora, a ser devorado por olhos e ouvidos, o corpo entregue a um frenesi de sensações que faz do prazer e do sexo simulacros da felicidade e do amor.
Seres relacionais e racionais, como acentuam os filósofos desde Sócrates, somos agora reduzidos a seres extrofiados, revirados para fora, estranhos a nós próprios, como lamentava Kierkegaard, pois nossa auto-estima passa a depender do que vem de fora -da gula e da antropofagia visual aos arremedos de fama, fortuna e poder.
Páscoa significa travessia, passagem. Talvez uma das mais difíceis seja a que nos faz percorrer o caminho entre a epiderme e a vida interior, não para dualizar polaridades, mas para resgatar a unidade. O budismo tibetano tem razão ao dizer que, malgrado todo avanço científico e tecnológico, cada pessoa é ontologicamente a mesma desde que o símio tomou consciência de que o galho de árvore em sua mão poderia servir-lhe de arma de ataque e defesa.
Aristóteles sintetizou-nos nas esferas sensitiva, racional e espiritual, como unidade que exige equilíbrio. A exacerbação de uma resulta na atrofia das outras. Só o predomínio do espiritual é capaz de imprimir sensatez "às loucas da casa", como diria o poeta, evitando o sabor de náusea dos sentidos descrito por Sartre, bem como o racionalismo que, ao contrário de Tomás de Aquino, julga equivocamente que a razão é a suprema expressão da inteligência.
Fazer Páscoa em si mesmo é cultivar a subjetividade. "Beber do próprio poço", sugerem os místicos. Desnudar-se de ilusões egocêntricas, fazer os sentidos jejuarem, adequar a razão aos seus limites, orar e meditar para poder contemplar.
Somos seres vocacionados à transcendência. Como dizia Hélio Pellegrino, uma samambaia desfruta de sua plenitude vegetal. Nós, não; escravos do desejo, temos buracos no corpo e na alma. É a "gula de Deus", da qual falava Rimbaud.
Ao deixar de trilhar as veredas que conduzem ao Absoluto, corremos o risco de nos perder no acidentado terreno que cotidianiza o absurdo: iras e mágoas, inveja e competição, medo e, sobretudo, uma incômoda sensação de não saber exatamente o que fazer desse breve período de existência.
A Páscoa é precedida de uma morte que, emblematicamente, a tradição cristã qualifica de paixão -um ato de amor, de entrega, que faz refluir tudo aquilo que dispersa, aliena e ilude. Jesus no túmulo simboliza o silêncio, a volta ao mais íntimo de si mesmo, abraçar a solidão sem se sentir solitário. Ressuscitar, renascer na ousadia de assumir valores altruístas e empenhar-se para que a justiça seja o fundamento da paz.
Tudo que existe preexiste, subsiste e coexiste. É universo, não pluriverso. Comunhão e luz. Não é em vão que os orientais chamam o centro energético do nosso ser, lá onde se situa o coração, de plexo solar.
O silêncio das galáxias no infinito é um convite para que se saiba fechar os olhos para ver melhor. Para descobrir, no âmago de si, a presença amorosa de Deus, que impregna o lado avesso da pele e anseia fluir por todo o corpo, palavras e atos, de modo a fazer de nós seres vitalmente pascais, cuja existência coincida com a sua essência.


Carlos Alberto Libânio Christo (frei Betto), 53, frade dominicano e escritor, é assessor de movimentos sociais e pastorais e autor de "A Obra do Artista - uma Visão Holística do Universo" (Ática), entre outros livros.



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