São Paulo, sábado, 04 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil corre risco de contágio pela crise argentina?

NÃO

A ressaca dos embriagados não contagia

ROLAND VERAS SALDANHA JR.

Dois embriagados amparavam um ao outro, o que lhes garantia permanecer erguidos. Um dos ébrios decidiu deixar o vício, passou por um período difícil, mas hoje parece convencido dos malefícios da bebida. O outro bêbado, com persistência e convicção portenhas, permaneceu irresoluto, com a garrafa nas mãos, ainda que atordoado com a perda do companheiro. Cambaleou por mais alguns metros e caiu, encontrando-se hoje em traumática situação clínica.
A pequena fábula dos bêbados, inebriados pelas sensações de curto prazo decorrentes do uso do álcool, mimetiza a situação recente vivida por Brasil e Argentina. No papel da droga, a distorção cambial. De forma mais rigorosa, a míope ilusão de bem-estar decorrente da fixação do câmbio nominal em patamares artificialmente baixos deixou de existir no Brasil desde a (tardia) desvalorização de janeiro de 1999, com a mudança para um regime de câmbio flutuante.
Amarrado constitucionalmente ao câmbio artificial, o projeto argentino sofreu duro revés com a decisão brasileira de deixar o vício, persistindo heroicamente na trilha do desemprego e do populismo macroeconômico que o fizera assumir o compromisso de longo termo com o câmbio fixo. A crise da nação irmã era previsível, assim como foi a brasileira. A recuperação brasileira foi também traumática, mas a dependência era substancialmente menor. A recuperação argentina será mais lenta e difícil, mas é incontornável.
Cogita-se hoje, diante da proximidade geográfica dos países e pela lembrança ainda viva dos episódios de embriaguez conjunta, a possível extensão, ao Brasil, do quadro traumático e penoso imposto aos argentinos. Usa-se, entretanto, impropriamente o termo "contágio", como se a dependência química fosse quadro virótico, como se pudesse um abstêmio necessitar de tratamento contra a bebedeira.
É drástico e deprimente o cenário argentino, com esfacelamento da classe média, fragmentação do sistema financeiro, recrudescimento das pressões inflacionárias e desmantelo fiscal e político. Reporta o diário "El Clarín" (2/5/02) que, em menos de cinco meses, mais de 1,5 milhão de argentinos passaram à situação de "pobres", categoria que hoje representa 42,6% da população total.
Dessa mesma população, quase 16% são indigentes. Mas esses números, embora amplificados pela recente descontinuação da paridade fixa, apenas agudizam um quadro crônico que já se verifica há mais de cinco anos no país.
No Brasil, o quadro é substancialmente diverso. Já há mais de três anos sob regime de câmbio flexível, com consecução de resultados importantes na área externa, paulatina consolidação de um ambiente democrático efetivo e perspectivas reais de retomada do crescimento sob razoável disciplina fiscal, o país parece ter conseguido se livrar da dependência dos efeitos alucinógenos de um câmbio artificial.
A queda das exportações brasileiras à Argentina já ocorreu, e foi assimilada. As importações da Argentina tendem a aumentar, mas são suportáveis. Em que pese a aparente consistência do projeto brasileiro, dele fazem parte -em medida imprescindível- importantes aportes de investimentos externos para que se possam manter acesos os benfazejos referenciais de longo prazo. Dessa forma, convém ter claro, nas alusões ao eventual "contágio" da economia doméstica pela crise argentina, um alerta, ainda que impropriamente expresso, a respeito dos riscos de cogitar experimentar reorientações na política monetária ou cambial brasileira.
Infelizmente, políticas cambiais populistas e tecnicamente erradas vêm sendo pugnadas para "acelerar" artificialmente o desempenho da economia brasileira, insinuando a idéia de que não haveria problemas em tomar mais um trago do elixir do câmbio fixo ou fortemente administrado.
O engano da independência e soberania pelo ensimesmamento num mundo já globalizado é tão lógico como a paixão pelos times de futebol. Os apaixonados torcedores, ao final do campeonato, sentem-se vencedores ou perdedores. No plano da economia, entretanto, são vidas, dignidade e esperança efetiva os troféus a serem conquistados. Como o Brasil (e a Argentina) precisam de patrocinadores para seu desenvolvimento (e recuperação), precisam sentir que estamos dispostos a jogar de acordo com as regras; mais do que isso, com um esquema tático que permita a vitória.
Para afastar expectativas de contágio pela crise argentina, basta evitar que se pense estarmos dispostos ao novo trago. Para conseguir ganhar o jogo, e bem, é necessário jogar um bom futebol.


Roland Veras Saldanha Jr., 33, mestre em economia de empresas pela FGV-SP, é professor do Departamento de Economia da PUC-SP.

E-mail: rsaldanha@actiomercatoria.com.br



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