São Paulo, quarta-feira, 04 de maio de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A espada e o "ou"

SAULO RAMOS

Contrariando a apreciação do senador Marco Maciel sobre nossa transição para a democracia, o professor da Universidade Federal de Pernambuco Jorge Zaverucha escreveu, aqui em "Tendências e Debates" (26/4/ 05), uma das maiores bobagens que já li sobre a história recente do Brasil.
Deixando de lado suas comparações com a Espanha, afirmou o articulista que "Tancredo Neves/José Sarney foram eleitos por instituições criadas pelo regime autoritário para favorecer seus interesses". Chegou a essa conclusão o curioso detetive da história dizendo que Sarney presidiu o PDS, braço político do regime militar. Seria, portanto, um agente infiltrado nas forças que lutavam pela democracia. E vai mais longe, ao dizer: "Com a morte de Tancredo, surgiu uma disputa jurídica sobre quem o deveria suceder. A solução foi sobretudo militar. Curiosamente, Ulysses Guimarães apareceu na mídia como estadista capaz de abrir mão generosamente da disputa pelo poder presidencial".


Figueiredo, que odiava Tancredo, passou a odiar Sarney. Na Aeronáutica havia tropa disposta a anular a eleição


Atribui a Ulysses Guimarães afirmações posteriores: "Eu não fui bonzinho coisa nenhuma. Seguia as instruções de meus juristas. O meu Pontes de Miranda estava lá fardado e com a espada me cutucando que quem tinha de assumir era o Sarney". E revela: quem estava com a espada cutucando Ulysses era o general Leônidas Pires Gonçalves. Em seguida, afirma que ouviu de Antonio Carlos Magalhães que Leônidas, "um jurista militar, em meio a uma reunião, apontando a Constituição, disse que Sarney tinha que assumir". Não era mais a espada. O general estava apontando para a lei.
Em primeiro lugar, a "questão jurídica" não surgiu depois da morte de Tancredo. É o primeiro erro grosseiro quanto ao fato histórico, que prejudica as conclusões que dele o historiador queira inferir em suas análises. A questão surgiu com o internamento de Tancredo no hospital e com o conseqüente impedimento de tomar posse do cargo de presidente da República, marcada para o dia seguinte. Levantou-se a tese de que o vice não poderia assumir porque o titular não havia tomado posse e, portanto, não tinha o direito de substituir ou suceder quem no cargo não estava. A Constituição era, porém, muito clara: "Se, decorridos dez dias da data fixada para a posse, o presidente ou o vice-presidente, salvo motivo de força maior, não tiver assumido o cargo, este será declarado vago pelo Congresso Nacional" (parágrafo único do art. 76 da Constituição então vigente).
Não precisa ser jurista para verificar que aquele "ou" entre presidente e vice-presidente asseguraria a posse de um ou de outro. Se o presidente, por motivo de força maior, não podia assumir, o vice podia. E pronto. Leônidas Pires Gonçalves, um oficial honrado, escolhido por Tancredo para seu ministro do Exército, liderava um grupo de militares legalistas que queria a volta da democracia. Os integrantes desse grupo, instruídos pela sagacidade de Tancredo, convenceram os demais a devolver o poder aos civis. Democracia era outro papo.
Claro que os gorilas da ditadura tinham ambições de continuar no poder. Não foram eles que elegeram Tancredo Neves, como afirma o articulista pernambucano. O sistema militar, pouco tempo antes, tivera uma estrondosa vitória no Congresso Nacional, com a rejeição da emenda de eleições diretas para presidente. O Congresso era o Colégio Eleitoral. Pelo costume de impor tudo aos nossos parlamentares, os militares concordaram em realizar eleições no Colégio Eleitoral e lançaram como candidato Paulo Maluf, cria do general Costa e Silva e um civil de confiança do regime autoritário, que combatia a subversão e a corrupção. Estavam certos de que venceriam, pois vinham de uma vitória na votação contrária às eleições diretas. O presidente da República era o general João Batista Figueiredo, que defendia a legalidade, isto é, as eleições indiretas. Na privacidade, costumava dizer "Tancredo "never'". Mas Tancredo foi eleito por 480 votos, contra 180 dados a Paulo Maluf.
Figueiredo, que odiava Tancredo, passou a odiar Sarney, que ajudou a derrotá-lo. Com o impedimento do presidente eleito, essa ala totalitária quis aproveitar o pretexto para virar a mesa. Na Aeronáutica havia tropa disposta a anular a eleição. Walter Pires, então ministro do Exército, quando soube que Sarney tomaria posse, declarou expressamente que iria mobilizar seus dispositivos para impedir. Leitão de Abreu o fez desistir, dizendo que a tropa já estava sob o comando de Leônidas.
Sarney assumiu o governo e permitiu todas as liberdades, a volta dos partidos de esquerda, na ilegalidade desde Juscelino, e convocou a Constituinte. Não se pode afirmar, pois, que tudo isso foi obra dos militares.
O professor Zaverucha atropela mais uma vez a história ao afirmar que "Tancredo quis um mandato cheio, de quatro anos. Achando pouco, Sarney pressionou o Congresso, com ajuda dos militares, pelo quinto ano de governo". Tancredo tinha o mandato de seis anos e nunca falou em quatro. Sarney, que o sucedeu, também tinha os mesmos seis anos. Pela lógica do professor, os militares pressionaram o Congresso para reduzir para cinco. Não são mais as rádios e televisões. Agora foram os militares.
Vejam o que professores universitários fazem com a história do Brasil. E com história recente, que nós, os mais velhos, conhecemos por a ter vivido por dentro. Logo, logo vão afirmar que Pedro Álvares Cabral descobriu a Argentina e que o padre Anchieta fundou Buenos Aires. O professor Zaverucha é doutor pela Universidade de Chicago. Podia escrever a história de Al Capone. E deixar a nossa em paz.

José Saulo Pereira Ramos, 75, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


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