São Paulo, sexta-feira, 04 de junho de 2004

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JOSÉ SARNEY

Como fazer coisas inúteis

O Iraque passa a ser um exemplo didático que não se esgota na guerra, na invasão, na bagunça sangrenta em que se transformou. É um espelho a refletir sobre a total falta de senso. Quando quiserem fazer coisas inúteis, melhor advertir: não façam Iraque.
Bush fez a guerra para evitar que armas "mortíferas", de destruição em massa, químicas, bacteriológicas, nucleares ameaçassem o mundo. Verdade constatada: nada disso existia nem tinha possibilidade de existir. Era uma terra em miséria, sem dinheiro nem para comprar comida.
Mas havia a justificativa de Saddam estar por trás do ataque trágico, desumano e brutal às torres gêmeas de Nova York. Verdade apurada: o Iraque não teve nenhuma participação naqueles episódios, tinha mais juízo do que Bush de não entrar naquela fria monumental. Apurado e comprovadamente falso.
Saddam estaria ligado à Al Qaeda, financiando e oferecendo treinamento a terroristas. Apurado até agora: nenhuma ligação tinha Saddam com Al Qaeda. Nem a CIA ou o FBI descobriram.
Saddam era um inimigo frontal dos Estados Unidos, ameaçava-os de toda maneira numa retórica rasteira e inconseqüente, o país e seu governo, através dos seus dirigentes. Verdade.
Saddam organizou um complô para matar o Bush pai. Há indícios. Disso Bush filho não se esqueceu e teve a oportunidade de resumir essa atitude imperdoável numa expressão de bom filho, para ter raiva: "Ele quis matar papai".
Saddam era um ditador execrável, cometeu as piores violações aos direitos individuais, furtou, torturou, matou, escravizou seu povo, tinha um regime de crueldade repugnante. Cristalina verdade.
Saddam caiu. Está preso. Único e bom resultado de toda a guerra. Mas o que aconteceu? O Iraque está mais pobre do que antes, arrasado, seu povo faminto e sem trabalho, o país ocupado por forças estrangeiras que lhe impõem o sistema de dominação mais violento que se possa imaginar.
Saddam torturava. Os soldados americanos torturam com requintes de crueldade que estão chocando o mundo inteiro, têm uma conduta bárbara e indecorosa jamais pensada.
Saddam roubava. Os jornais publicam que há investigações sobre roubos e saques das terras ocupadas, até mesmo de jóias das famílias iraquianas com casas invadidas pelas tropas estrangeiras.
A Guerra do Iraque foi a mais inútil demonstração de força. Tudo o que pensou conjurar está fazendo, deixando no mundo inteiro um rastro de desconfiança sobre o Texas, Cheney e o petróleo iraquiano.
Transformar o país numa democracia. O que se vê é a anarquia -e o único regime que pode surgir é uma teocracia, os xiitas no poder.
Se o objetivo da guerra fosse apenas tirar um ditador, mais fácil seria invadir o Turcomenistão, mais fácil e menos traumático, onde há um presidente, Niyazov "Turcomenbashi", que está mudando os dias e os meses -em vez de terça-feira, "dia jovem", em vez de quarta, "dia principal", em vez de quinta, "dia favorável"- e que proibiu balés, barbas, dentes de ouro e cabelos compridos. Questionar o presidente é "parricídio". Então, se é para evitar violação aos direitos humanos e banir tiranos, melhor o Turcomenistão. E lá também há petróleo, um fundo de US$ 3 bilhões, depositado no Deutsche Bank, que o presidente, só ele, o divino, pode movimentar.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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