São Paulo, sexta-feira, 04 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Estado e sociedade civil

BORIS FAUSTO

É um lugar-comum dizer que a democracia, nos dias que correm, sofre uma séria crise. Exemplificando, uma pesquisa da ONU revelou que 54,7% das pessoas entrevistadas na América Latina declararam preferir um regime autoritário, se este for capaz de reduzir a pobreza e as dificuldades econômicas. Outra pesquisa internacional, da agência Gallup, realizada em 2002, mostrou que 51% das pessoas em todo o mundo confiam pouco ou nada nos Parlamentos, proporção que sobe para 59% na União Européia e muito mais no Brasil.
Mas talvez seja mais adequado falar em déficit de democracia, em vez de crise, porque a última expressão dá idéia de um objetivo que chegou a ser de algum modo alcançado, em tempos passados, o que não é certo. Um dos elementos centrais do déficit diz respeito à qualidade do regime democrático, a seu conteúdo participativo, questão que se relaciona com o tema da legitimidade da representação.


Talvez seja mais adequado falar em déficit de democracia, em vez de crise


No mundo complicado de hoje, dois processos inter-relacionados devem ser assinalados como muito positivos, admitidos todos os seus limites. De um lado, há o impulso organizatório da sociedade, sob formas e objetivos variados, facilitado enormemente pela ampla adoção das novas tecnologias de comunicação. De outro, a entrada na agenda dos Estados, ou das uniões estatais, dos temas de regulação da ordem mundial, a exemplo da assinatura de protocolos para manter as condições mínimas de habitabilidade do globo ou dos esforços para criar e outorgar jurisdição a tribunais penais internacionais.
Ficando no tema da legitimidade da representação, parece-me claro que se originam de organizações da sociedade civil as maiores esperanças de que o regime democrático não se reduza apenas a um ato ritual e datado de eleição, por mais que o processo eleitoral seja absolutamente essencial à democracia. Mas a constatação está longe de ser unânime, pois essa questão das relações entre sociedade e Estado cerca-se de maniqueísmos e incompreensões.
O maniqueísmo parte das correntes que tendem a idealizar as qualidades societárias e o risco das organizações estatais. Em outra direção, aparecem os céticos do papel que as organizações da sociedade civil podem desempenhar, seja pelo seu conteúdo "frouxo", seja pela alegação de que as instituições políticas formais são as que contam, em última análise. Por essas e outras razões, tem muita relevância o tema da democracia participativa, ou, em outras palavras, o tema das relações e da criação de elos entre a sociedade e o Estado. Não por acaso, ele figurou no seminário inaugural do Instituto Fernando Henrique Cardoso, a partir da discussão de um texto de Manuel Castells, sociólogo catalão bastante conhecido internacionalmente e entre nós.
Destaco aqui alguns pontos que me parecem essenciais. Depois de analisar a crise multidimensional dos Estados nacionais, Castells sustenta que não há, ao menos em um futuro previsível, a perspectiva de seu desaparecimento. O que ocorre é sua pragmática transformação para se adaptar a um novo contexto, utilizando-se de três mecanismos básicos: 1) a criação de redes de Estados associados (União Européia, Nafta, Mercosul etc.); 2) a tentativa de reformular, não sem vetos e muitas dificuldades, instituições globais existentes (a ONU em primeiro lugar) e de formar novas, como a Organização Mundial do Comércio ou o Tribunal Penal Internacional; 3) a concessão de espaço a governos regionais e locais e às ONGs, na expectativa de obter maior legitimidade.
Quanto às organizações da sociedade civil, Castells aponta para o fato de que, se elas sempre existiram no passado, promovendo direitos e interesses, ganharam, nos últimos anos, o caráter de rede, maior papel e diversidade -o que não equivale a um juízo positivo sobre todas elas, pois tais organizações, exemplificando, abrangem grupos dedicados aos direitos da mulher, aos direitos étnicos e à preservação do meio ambiente, mas também à afirmação do fundamentalismo religioso. Nos casos negativos extremos, elas podem ser guarda-chuvas para a corrupção, ou organizações criminosas que traficam com armas e drogas.
Apoiando-se na definição gramsciana de sociedade civil, Castells afirma que não há sociedade civil sem formas de articulação com o Estado -ao contrário do que ocorre com os movimentos sociais e os protestos populares. Ela constitui assim um canal entre os pólos da sociedade e do Estado, capaz de transformar este último por meio de um processo de representação da cidadania que transcende, sem os negar, os procedimentos codificados nas instituições políticas.
Os caminhos concretamente apontados para o alcance desses fins envolvem graus elevados de utopia. Mas a utopia é, nesse caso, um horizonte criativo que nos leva, ao menos, a encarar temas nem sempre percebidos num mundo tão condicionado pelas peripécias da política tradicional e da economia.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional, da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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