São Paulo, terça-feira, 04 de julho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Luta pela Constituição


A Constituição não pode ser tida como lei eterna, mas também não pode ser um boneco de cera que o governante amolda


JOSÉ AFONSO DA SILVA

A luta pelo Direito é uma constante na vida humana. Não se constrói uma sociedade livre, justa e solidária senão com intensa luta. Quando se trata de abrir espaço para a realização dos direitos fundamentais da pessoa humana, a luta se torna ainda mais árdua. Foi assim sempre no correr da história. Será sempre assim no futuro.



As Constituições foram inventadas como um instrumento eficaz dessas lutas. Geradas no bojo do absolutismo do século 18, como forma de positivar as liberdades fundamentais, fecundaram-se de novos direitos ao longo desses dois últimos séculos. Foram espetáculos extraordinários da mente humana a Convenção de Filadélfia de 1787, de onde se emanou a Constituição que ainda vigora nos EUA; ali se forjaram instituições fundamentais de um Estado Democrático e a Convenção francesa de 1789, de onde proveio o belo documento que se chama Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, consagrando as liberdades fundamentais.
Assim nasce o constitucionalismo, como meio de limitar a ação do poder e garantir a vigência dos direitos do homem. Nem sempre, contudo, o constitucionalismo foi democrático, a despeito do fato de que a Declaração de Independência (EUA) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamassem a igualdade de todos os homens, na prática tais propósitos não se realizaram. Isso sem falar no uso de formas constitucionais para implantar governos autoritários (Itália, Alemanha, Espanha e Portugal e Brasil), que encontraram homens de boa formação constitucional que puseram seus conhecimentos a serviços dessas ditaduras, como Carl Schmitt, na Alemanha, e Chico Campos, no Brasil. O regime militar que vigorou no Brasil (1964-1984) é um exemplo de utilização de Cartas Constitucionais a serviço de regimes anticonstitucionais. Sempre houve homens de boa formação constitucional a serviço de ideologias autoritárias. Daí poder falar-se em constitucionalistas democratas, constitucionalistas a serviço da democracia. Esses constitucionalistas é que queremos ver reunidos numa entidade destinada a defender a Constituição de 1988, o Estado Democrático de Direito e, por consequência, os direitos fundamentais da pessoa humana neles configurados.
A entidade com esses propósitos acaba de ser fundada pela ação de mais de 30 constitucionalistas. Lançada no dia 26 de maio, no Congresso de Direito Administrativo realizado no Parlatino, recebeu o nome de Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas (ABCD), cujos objetivos são, segundo seus estatutos: defender a Constituição e o Estado Democrático de Direito; fomentar e incrementar o estudo do direito constitucional; realizar pesquisas jurídico-constitucionais próprias e em convênio com outras instituições, organizar cursos, seminários, conferências, debates e congressos sobre direito constitucional e instituições políticas; aglutinar esforços e conhecimentos de pesquisadores do direito constitucional e da ciência política em geral; facilitar o conhecimento da legislação, doutrina e jurisprudência constitucionais dos países ibero-americanos mediante a organização de um serviço informativo; manter intercâmbio com outras instituições congêneres nacionais e internacionais; editar os trabalhos apresentados aos congressos e certames que organize; estabelecer um centro de documentação jurídico-constitucional; propor medidas judiciais, mandados de segurança coletivos e ações civis públicas na defesa da Constituição, dos direitos e das liberdades fundamentais.
Para orientar a ação da entidade foi aprovada uma carta de princípios com o seguinte conteúdo:
"Os constitucionalistas democratas resolvem fundar uma instituição destinada a congregá-los no fim comum de defesa da Constituição e do Estado Democrático de Direito, defesa não da Constituição como um simples nome, mas da Constituição como repositório de valores políticos populares que dão essência aos princípios democráticos.
A democracia que defendem é a democracia concebida como revolução permanente que tem no povo a sua primeira e fundamental referência, daí por que postulam pela vigência, eficácia e aplicabilidade dos direitos sociais e, em consequência, por uma ideologia da igualdade. Estão preocupados com os rumos neoliberais que a política brasileira toma, traduzidos especialmente nas reformas constitucionais do atual governo, por onde as oligarquias recuperam seu ideário e o fazem prevalecer nas reformas em andamento.
Entendem que uma Constituição é, antes de tudo, um instrumento de defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, e que a Constituição de 1988 contém todos os meios necessários à governabilidade num regime de democracia social, e oferece condições para o combate à fome e à miséria com melhor distribuição de renda e justiça social, se a vontade política dos governantes assim o quiser, rompendo com as injunções de instituições financeiras internacionais e resistindo às formas dominadoras da globalização.
Entendem igualmente que a Constituição não pode ser tida como uma lei eterna, mas também não pode ser uma espécie de boneco de cera que o governante do momento amolda à sua feição e interesse. Estão conscientes da necessidade de uma reforma do Judiciário especialmente com a criação de um tribunal constitucional, que melhore seu funcionamento e possibilite acesso mais amplo à cidadania em busca de uma Justiça igual para todos; não recusam seu apoio a uma reforma política que democratize as relações de poderes, elimine medidas provisórias, garanta a livre participação popular, coíba abusos, assim como apoiarão uma reforma tributária que reduza os ônus da tributação indireta, grave mais equitativamente a riqueza como uma das formas de redistribuição da renda nacional".
A filiação à ABCD não está sujeita a qualquer consideração de ordem ideológica, político-partidária ou religiosa. Nem a determinada escola ou tendência científica, mas implica a aceitação de seus fins estatutários e dos objetivos traduzidos na carta de princípios de sua fundação. Assim, esperamos contar com o apoio de todos aqueles que, preenchendo os requisitos de filiação, venham associar-se a nós nessa luta.


José Afonso da Silva, 75, constitucionalista. Presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas. Professor aposentado da Faculdade de Direito da USP. Ex-secretário da Segurança Pública (governo Mário Covas).



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Emir Sader: Trabalho e democracia

Índice
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.