São Paulo, terça-feira, 04 de julho de 2000


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Trabalho e democracia


Numa economia com desemprego estrutural, FHC remete a negociação da redução da jornada aos trabalhadores


EMIR SADER

Uma sociedade justa, democrática, hoje, é, antes de tudo, uma sociedade do trabalho. Isto é, uma sociedade em que o direito ao trabalho é garantido para todos, que todos vivam de seu trabalho, sem explorar o trabalho alheio. Um dos sintomas da profundidade da crise social brasileira foi expresso nas declarações do presidente da República de que há milhões de "inimpregáveis" no país. Agora, ele, de passagem pela França, aparentemente se associa à luta pela diminuição da jornada de trabalho como forma de combate ao desemprego. O aspecto positivo é o de estender a discussão sobre a justa reivindicação dos sindicatos. O negativo é a forma de escamotear o problema.



A política do governo francês de combate à inflação vale como uma denúncia da falácia da expressão "desemprego tecnológico", usualmente utilizada pelos governos -inclusive o brasileiro- como justificativa de sua inação diante dos milhões de "inimpregáveis". Porque a tecnologia, por si mesma, não desemprega ninguém. Ela simplesmente permite que, por exemplo, uma mesma mercadoria possa ser produzida em metade do tempo. Três situações diferentes podem decorrer das novas condições de produção: produzir o dobro de mercadorias; diminuir a jornada de trabalho e seguir produzindo a mesma quantidade de mercadorias; mandar embora a metade dos trabalhadores e manter o nível de produção. O triunfo de alguma dessas alternativas depende das relações de força sociais e políticas.
A tecnologia não define, por si só, as relações sociais. Ela o faz intermediada pela luta social. Assim, quando foi inventada a luz elétrica, poderia ter significado bem-estar maior na casa de toda a população, mas significou, antes de tudo, a introdução da jornada noturna de trabalho, com maior exploração dos trabalhadores em jornadas mais longas, inclusive para mulheres e crianças. Não se pode atribuir à luz elétrica ou a Thomas Edison a responsabilidade pela jornada noturna. Quem se apropria das inovações tecnológicas aumenta ou diminui a taxa de exploração.
No caso da jornada de trabalho, um governo de esquerda social-democrata, mas não da "Terceira Via", como o de Leonel Jospin, optou pela diminuição. Ela vem permitindo a diminuição, ainda que lentamente, do desemprego. Mas não significou qualquer fuga de capitais para outros países como a Inglaterra, por exemplo, que optou pelo modelo norte-americano de flexibilização do mercado de trabalho e pelo ataque frontal ao poder aquisitivo dos salários.
Consciente de que o mercado não distribui renda, não produz relações sociais harmônicas, mas, ao contrário, concentra e exclui, Jospin se valeu da maioria que seu governo dispõe no Congresso e fez aprovar uma lei de redução da jornada de trabalho. As pequenas e médias empresas têm essa redução subsidiada pelo governo, enquanto as outras têm que negociar diretamente com os trabalhadores as condições dessa redução por conta própria.
Tendo aderido ao modelo norte-americano de flexibilização laboral, FHC, igualmente com maioria no Congresso -porém maioria de direita-, propõe que a redução seja negociada entre patrões e trabalhadores, isto é, remete às relações extremamente desfavoráveis aos trabalhadores numa economia com desemprego estrutural a negociação da redução da jornada. Isenta-se de qualquer ação governamental, como se não se tratasse de uma responsabilidade do setor público. Essa a diferença essencial entre um governo de esquerda e um de direita, entre um governo apoiado pelos sindicatos, que força os empresários à negociação, e um governo de direita que assume como sua função essencial favorecer as condições de acumulação de capital e não ousa se opor, ou ao menos pressionar, às grandes empresas.
A luta pela redução da jornada de trabalho e pelo direito universal ao trabalho é uma das lutas fundamentais para uma sociedade democrática que possa, por sua vez, servir de fundamento para uma democracia política.


Emir Sader, 56, é professor de sociologia da USP e da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Autor de "Século 20: uma biografia não-autorizada" (Ed. da Fundação Perseu Abramo).



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