São Paulo, quarta-feira, 04 de julho de 2001

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Prerrogativa ou privilégio?


Se há um Poder Judiciário independente, não há necessidade de imunidade processual nem de foros privilegiados


FLÁVIA PIOVESAN

O corpo da estudante M.B.S., de 20 anos, foi encontrado, em junho de 1998, num terreno baldio nas proximidades de João Pessoa. Concluído o inquérito policial, provas foram reunidas e o principal suspeito do homicídio era um deputado estadual. Em observância ao instituto da imunidade parlamentar, por duas vezes foi solicitada à Assembléia Legislativa da Paraíba autorização para a instauração de processo criminal. Contudo as duas solicitações foram indeferidas. O deputado estadual exerce o seu quinto mandato consecutivo.
O caso foi submetido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelo Gajop (Gabinete de Assessoria Jurídica a Organizações Populares), pelo Cejil (Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional) e pelo MNDH (Movimento Nacional de Direitos Humanos), já que o regime de impunidade parlamentar estaria a violar parâmetros internacionais de proteção de direitos humanos.
A gravidade do episódio suscita indagações. Em que medida o instituto da imunidade parlamentar é compatível com o Estado de Direito? É razoável, na hipótese de crime comum, condicionar à prévia licença a instauração de processo contra parlamentares? A imunidade parlamentar deve ser compreendida como uma prerrogativa institucional ou como um privilégio pessoal?
A denominada imunidade parlamentar processual fundamenta-se na idéia de preservação da independência e da autonomia do Legislativo, livrando-o do arbítrio, das ameaças e das perseguições comprometedoras de sua atuação. Teve seu apogeu histórico no final do século 18, na Revolução Francesa, como exigência da soberania do Parlamento moderno, que refletiria a própria soberania popular. Isso significa que a imunidade parlamentar só se justifica como garantia da instituição e como prerrogativa que objetiva assegurar o bom exercício da função parlamentar.
Essas razões subsistiriam na ordem contemporânea? Haveria justificativas para sua manutenção na Constituição de 1988? Na experiência constitucional brasileira, desde a primeira Constituição, a Carta Imperial de 1824, até a Constituição hoje vigente -com exceção feita à Carta de 1937-, a imunidade processual permaneceu praticamente inalterada. A respeito, vale reiterar o disposto no artigo 53, parágrafo 1º, da Constituição de 1988: "Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente sem a prévia licença de sua Casa".
Observe-se que, no Estado de Direito, afasta-se o risco de arbítrio e de ingerências indevidas no Legislativo. Se esse era o principal motivo a justificar a imunidade processual, estando ausente tal pressuposto, carece de razão a manutenção do instituto, especialmente se há um Judiciário autônomo e independente. Outros argumentos se somam.
A imunidade processual afronta o princípio da igualdade de todos perante a lei, o qual requer que seja a lei aplicada de forma geral e genérica a todos. Afronta ainda a exigência de responsabilização de todos os agentes públicos pelas ações que cometerem. O fato de exercer determinada função pública não pode ser escudo para a atribuição de responsabilidades. Merecem menção os casos Pinochet (preso e processado criminalmente) e Milosevic (preso e indiciado pela ONU), bem como toda a tendência contemporânea de abolir as imunidades em razão do exercício de determinado cargo, tornando as pessoas públicas responsáveis por seus atos. Basta, para tanto, citar o artigo 27 do Estatuto do Tribunal Penal Internacional Permanente, que prescreve: "O estatuto será aplicável igualmente a todos, sem distinção nenhuma baseada em cargo oficial, que não poderá eximir a responsabilidade penal nem poderá ser motivo para a redução de pena".
A vítima de um crime tem direito a proteção judicial, não podendo a lei excluir da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988). Ao princípio do livre acesso ao Judiciário, conjuga-se o dever do Estado de investigar, processar e punir aqueles que cometeram delitos.
Todos esses princípios são consagrados pela Constituição de 1988 na qualidade de marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no país. Temos de romper o legado da imunidade parlamentar para os crimes comuns, por exigência dos princípios que regem o Estado de Direito, preservando a inviolabilidade parlamentar para os chamados delitos de opinião. Pelos mesmos argumentos, deve ser abolido o foro privilegiado -que afronta o princípio da igualdade- e o voto secreto no Parlamento -que afronta o princípio da publicidade e transparência.
Em levantamento feito pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, o deputado Nelson Pelegrino (PT-BA), constata-se que, de 1995 a 1999, foram rejeitados 109 dos 137 pedidos de autorização para que deputados fossem criminalmente processados. Os dados mostram que a imunidade parlamentar tem propiciado atentatório regime de impunidade no país. A comissão pretende iniciar uma campanha pelo fim da imunidade parlamentar para crimes comuns -uma forma de combater a impunidade no meio político.
Nos próximos meses, a Câmara deve debater propostas para alteração do instituto. Na ordem contemporânea, a imunidade parlamentar converte-se de prerrogativa institucional em privilégio pessoal, inaceitável e inadmissível pela lógica e pelos princípios de um verdadeiro Estado democrático de Direito.


Flávia Piovesan, 32, professora-doutora de direito constitucional e direitos humanos da PUC-SP, é procuradora do Estado de São Paulo e membro da Comissão Justiça e Paz.



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