|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOSÉ SARNEY
Chato novo índice
O IBGE divulgou um índice novo,
que nos torna mais moços e mais
duvidosos sobre a contagem da nossa
idade. A coisa passou assim meio despercebida, a não ser pelo tratamento
que lhe deu a Folha, que entendeu a
coisa. É que, ao aferir o índice de expectativa de vida dos brasileiros, hoje
na casa dos 68,6 anos, na febre de saber tudo que ocorre na sociedade,
aprofundando pesquisas, surgiu um
novo critério de "viver sem qualidade". Isto é, não basta viver, que não é
viver, é preciso, para contar, viver
"com qualidade". O diabo é saber que
qualidade é essa. O índice aferido pelo
IBGE diz que o brasileiro vive 21,3%
de sua vida com alguma incapacidade, e não conta. Assim, a expectativa
de vida de 68,6 anos, que temos, passou para 54 anos.
Deu-me grande alegria e tristeza esse cálculo novo. Assim, eu, que tenho
73 anos, pelo IBGE só tenho 58, o que
me fez muito alegre. Por outro lado,
soube que passei 15 anos com alguma
incapacidade de viver, segundo a média brasileira, na qual estou incluído.
Por especulação, comecei a deduzir,
também, o meu tempo de dormir, de
comer, de andar e outras deduções
menores, e quase caí de costas, com a
conclusão de que, por pouco, não tinha nascido. Ora, se calcular que levei
dormindo 20% do meu tempo, cota
baixa, devo diminuir, dos meus 73,
15,6 anos. Se passei sem qualidade de
vida 15 anos e mais 15 dormindo, cheguei a 43 anos! Continuando a divagar
nesse mar de hipóteses, se agregar a
esses descontos o tempo de comer
(uns seis anos), o de me vestir, tomar
banho, barbear-me, andar (mais ou
menos dez anos) e se fizer outras somas e deduções, descubro minha idade real de uns 15 anos! E se eu fosse
frade, descontaria as sete horas que
São Bento, no século 6º, estabeleceu
como as horas canônicas destinadas à
oração.
Tenho 15 anos de vida! Se, por um
lado, é motivo de alegria, pelo outro é
de grande desolação. Viver não se deve contar por aquilo que significa o
"sopro da vida", na imagem do Gênesis, nem na concepção daquele deus
mitológico que sabia o "mistério da
respiração". Viver não é nada disso, é
ter qualidade de vida, dizem os cientistas e os critérios estatísticos. E fico
pensando que muitas pessoas que
pensam viver não vivem, tão atribuladas têm sido suas vidas. A vaca européia, que agora recebe um subsídio de
US$ 1.000 por ano, tem melhor qualidade de vida do que os nossos pobres
lavradores do sertão nordestino.
Mas as minhas preocupações não ficam no terreno das especulações do
que é viver e da média das expectativas de vida. É da influência que este
novo índice vai ter na reforma da Previdência e das suas consequências na
interpretação do tempo de serviço.
Quando se fala em aposentadoria
compulsória aos 70 anos, a nova concepção, apoiada pelo IBGE, nos remete a 56 anos. Se a reforma estabelecer o
critério da vida sem qualidade, haverá
gente trabalhando mais tempo, porque ainda não alcançou o teto da lei.
Veja-se como as estatísticas são dados preciosos e mexem com tudo. Há
estatística para todos e há várias maneiras de interpretá-las. A aposentada
Arlete Bittar, ouvida pela Folha sobre
o novo índice, considerou-o tempo de
vida "um pouco mais chata". Assim,
ela resumiu concisa e sabiamente o
que sabíamos: vida chata não é viver,
não conta. E, como os 21,3% da vida
são chatos, não devemos contá-los.
Austregésilo de Athayde já adotava
essa teoria na Academia Brasileira de
Letras. Ele me disse: "Aqui, Sarney,
pode entrar bom escritor, mau escritor, sem ser escritor etc. e tal. Agora só
não pode entrar chato. Conviver com
eles é chato". Eis o novo índice do IBGE, ele também é chato.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Marcelo Beraba: Casas de maribondos Próximo Texto: Frase
Índice
|