São Paulo, quarta-feira, 04 de agosto de 2004

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ANTONIO DELFIM NETTO

A grande troca

Arguto observador da nascente democracia americana, Alexis De Tocqueville, no seu insuperável "De la Démocratie en Amérique", ensinava, em 1835, que "a democracia só pode obter a verdade através do resultado da experiência e muitas nações podem desaparecer enquanto esperam as conseqüências de seus erros". O problema, como ele mesmo avalia, é que "a democracia não tem o correto julgamento que é necessário para selecionar os homens realmente merecedores de sua confiança. Às vezes, não tem nem o desejo nem a inclinação de fazê-lo". E chama a atenção para um fator elementar que complica o desenvolvimento mais harmonioso do sistema democrático. "Não pode ser negado", nos diz ele, "que a instituição democrática estimula fortemente o sentimento da inveja no coração do homem. Não apenas porque ela assegura a qualquer um os meios de elevar-se à mesma altura dos outros mas também porque esses meios freqüentemente decepcionam quem os usou. As instituições democráticas despertam e fortalecem a paixão pela igualdade que elas nunca poderão satisfazer adequadamente".
Esse sentimento de "inveja" (por mais disfarçado que seja) sempre emerge nas sucessões de poder quando os resultados das "novas experiências" parecem superar os da "velha", que teve a sua oportunidade e fracassou. A crítica do "velho" à luz do "novo" é sempre -mesmo quando não quer parecer- o grito angustiado de uma volta ao futuro para tentar uma "novíssima" experiência...
Não há como negar que a octaetéride fernandista deixou muitas lições positivas, principalmente a sua forma civilizada de conduzir a coisa pública. Nesse sentido, aliás, repetiu o que já havia feito o ilustre presidente José Sarney na crítica década dos 80.
Mas o que é impossível negar é que, visto do ponto do dia 31 de dezembro de 2002, a octaetéride caracterizou-se por uma grande troca: trocamos a hiperinflação por um hiperendividamento, por uma hipertributação e por uma hiperdependência externa.
O Plano Real foi a mais criativa obra dos economistas brasileiros, e sua execução foi admirável graças ao que o presidente Fernando Henrique Cardoso hoje chama de "pedagogia democrática". O que se discute são os seus custos em termos de atraso do desenvolvimento do país. O que incomoda mais o ex-presidente é o não-reconhecimento dos "esqueletos" que ele recebeu, mas que têm pouca influência no estoque de dívida, porque ele pagou com a liquidação rápida e descuidada de parte do patrimônio nacional ("Focus", BC, 25/2/2003).
FHC não tem de que se desculpar: governou com honra, mas com a inteligência condicionada à ideologia liberalista que o "mercado" lhe impôs na passagem pelo poder. Isso deve ter-lhe custado uma dolorosa dissonância cognitiva entre a função dignificante mas passageira de presidente e a condição de grande intelectual. Discutir a dívida pública disfarçada em "pedagogia democrática" não honra sua inteligência. Lembra mais o "grito angustiado" a que se refere Alexis De Tocqueville...


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

dep.delfimnetto@camara.gov.br


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