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ANTONIO DELFIM NETTO
A grande troca
Arguto observador da nascente democracia americana,
Alexis De Tocqueville, no seu insuperável "De la Démocratie en Amérique", ensinava, em 1835, que "a democracia só pode obter a verdade através
do resultado da experiência e muitas
nações podem desaparecer enquanto
esperam as conseqüências de seus erros". O problema, como ele mesmo
avalia, é que "a democracia não tem o
correto julgamento que é necessário
para selecionar os homens realmente
merecedores de sua confiança. Às vezes, não tem nem o desejo nem a inclinação de fazê-lo". E chama a atenção
para um fator elementar que complica
o desenvolvimento mais harmonioso
do sistema democrático. "Não pode
ser negado", nos diz ele, "que a instituição democrática estimula fortemente o sentimento da inveja no coração do homem. Não apenas porque
ela assegura a qualquer um os meios
de elevar-se à mesma altura dos outros mas também porque esses meios
freqüentemente decepcionam quem
os usou. As instituições democráticas
despertam e fortalecem a paixão pela
igualdade que elas nunca poderão satisfazer adequadamente".
Esse sentimento de "inveja" (por
mais disfarçado que seja) sempre
emerge nas sucessões de poder quando os resultados das "novas experiências" parecem superar os da "velha",
que teve a sua oportunidade e fracassou. A crítica do "velho" à luz do "novo" é sempre -mesmo quando não
quer parecer- o grito angustiado de
uma volta ao futuro para tentar uma
"novíssima" experiência...
Não há como negar que a octaetéride fernandista deixou muitas lições
positivas, principalmente a sua forma
civilizada de conduzir a coisa pública.
Nesse sentido, aliás, repetiu o que já
havia feito o ilustre presidente José
Sarney na crítica década dos 80.
Mas o que é impossível negar é que,
visto do ponto do dia 31 de dezembro
de 2002, a octaetéride caracterizou-se
por uma grande troca: trocamos a hiperinflação por um hiperendividamento, por uma hipertributação e por
uma hiperdependência externa.
O Plano Real foi a mais criativa obra
dos economistas brasileiros, e sua execução foi admirável graças ao que o
presidente Fernando Henrique Cardoso hoje chama de "pedagogia democrática". O que se discute são os
seus custos em termos de atraso do
desenvolvimento do país. O que incomoda mais o ex-presidente é o não-reconhecimento dos "esqueletos" que
ele recebeu, mas que têm pouca influência no estoque de dívida, porque
ele pagou com a liquidação rápida e
descuidada de parte do patrimônio
nacional ("Focus", BC, 25/2/2003).
FHC não tem de que se desculpar:
governou com honra, mas com a inteligência condicionada à ideologia liberalista que o "mercado" lhe impôs na
passagem pelo poder. Isso deve ter-lhe
custado uma dolorosa dissonância
cognitiva entre a função dignificante
mas passageira de presidente e a condição de grande intelectual. Discutir a
dívida pública disfarçada em "pedagogia democrática" não honra sua inteligência. Lembra mais o "grito angustiado" a que se refere Alexis De
Tocqueville...
Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras
nesta coluna.
dep.delfimnetto@camara.gov.br
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