São Paulo, Sábado, 04 de Setembro de 1999
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Sopa de pedra

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA

Brasília - Um clássico da literatura infantil européia é a história de três soldados famintos que enganam uma aldeia de camponeses, onde ninguém queria lhes dar comida, convencendo-a de que fariam uma sopa deliciosa só com água e pedra.
Extasiados com a possibilidade, os agricultores acabam dando aos militares primeiro sal, depois outros temperos, legumes, carne, que lhes eram pedidos apenas para fazer com que a sopa de pedra ficasse mais gostosa.
No terrível cotidiano atual de Angola, onde livros são coisa que a maioria das crianças nem sabe que existem, a lenda da sopa de pedra é parte da realidade de centenas de milhares de pessoas; seu final nunca é feliz.
Relatos de missionários religiosos em cidades sitiadas no país mostram que água com sal tem sido o único alimento de refugiados há semanas.
Os angolanos são vítimas de uma política colonial desastrada, do maniqueísmo selvagem da Guerra Fria, do egoísmo criminoso de suas elites corruptas. País com raro potencial de prosperidade no mundo, rico em diamantes, petróleo, solos férteis, Angola virou palco de uma das maiores catástrofes humanitárias do século, como a Folha mostrará em reportagens na sua edição de amanhã.
Portugal, EUA, África do Sul, Cuba e Rússia, co-responsáveis diretos pela miséria angolana atual, têm obrigação moral e política de ajudar a repará-la. Alguns desses países não dispõem agora de recursos materiais para puxar Angola para fora do fosso.
Mas todos podem e têm o dever de se empenhar politicamente para encontrar uma saída viável antes que a situação se deteriore ainda mais.
É esse também o caso do Brasil, que nunca contribuiu para a desgraça de Angola mas, por seus vínculos culturais e afetivos (e por ter se beneficiado tanto do trabalho forçado dos antepassados dos atuais angolanos que vieram para cá como escravos), deve ajudar a buscar uma solução.
Salvar Angola, dar substância à sua sopa de pedra, deveria ser uma bandeira para a diplomacia do Brasil.


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