São Paulo, Sábado, 04 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O carro a álcool é uma solução eficiente?

NÃO
Energia não é pipoca

WALTER BELIK
JOSÉ GRAZIANO DA SILVA

A discussão do futuro do carro a álcool envolve aspectos mais amplos, que dizem respeito a toda a cadeia de produção que tem como base a cana-de-açúcar. Por mais que se noticie, a opinião pública ainda não atentou para a profundidade da crise vivida pela agroindústria canavieira. Em seminário organizado pelo NEA/Unicamp em 20/8, que reuniu setores interessados, ficaram claros alguns pontos.
Primeiro: apesar do preço deprimido do açúcar no mercado internacional, o produto brasileiro é extremamente competitivo. O nosso custo de produção está no patamar de US$ 130/tonelada, contra US$ 334/t dos principais exportadores, sendo que o preço internacional tem girado em torno de US$ 180/t. Apesar disso, não há perspectiva de que possamos aumentar significativamente nossas exportações, dadas as restrições de cotas e tarifas que nos impõem países desenvolvidos -com os EUA à frente.
Já o álcool vive problemas ainda mais sérios. Os leilões elevaram o preço de venda, mas o R$ 0,24/litro obtido pelo hidratado (combustível da frota a álcool) é visivelmente insuficiente para cobrir os custos variáveis da maior parte das destilarias. Com um excedente de álcool de 1,8 bilhão de litros, não há como escoar a produção sem reduzir a oferta de cana. Diante desse impasse, algumas usinas estão montando cartéis de comercialização autorizados pelo governo visando escoar o produto a preços remuneradores. Embora o governo paulista tenha se comprometido a implantar medidas de apoio ao Proálcool, os resultados deverão se fazer sentir somente no médio e longo prazo.
Segundo: os impactos regionais da crise também já são visíveis em todo o Brasil. Mais de 130 usinas já encerraram suas atividades desde o início da crise. A maioria delas está no Nordeste, mas o Estado de São Paulo conta com 18 entre as quebradas. Por trás dessas usinas fechadas pode-se estimar uma legião de mais de 20 mil fornecedores de cana que estão deixando de produzir. É possível observar dois movimentos claros de mudança: a reconversão de áreas de cana para outras atividades, principalmente a fruticultura, em Campos (RJ) e no Nordeste, e a realocação de usinas em direção ao Centro-Oeste, em busca de terras mais baratas e mecanizáveis.
Terceiro: há a certeza de todos -de trabalhadores a usineiros- de que o emprego deverá se reduzir muito, principalmente por causa da mecanização do plantio e da colheita. Os dados apresentados no seminário pela Fundação Seade mostram que o emprego na agroindústria canavieira gira hoje em torno de 90 mil trabalhadores só na parte industrial, além de outros 255 mil a 300 mil na parte agrícola. Esses números poderão cair à metade nos próximos anos, acrescentando-se cerca de 150 mil desempregados ao estoque já existente.
Quarto: todos concordam sobre a necessidade premente de criar novos mecanismos de coordenação setorial para que se possa dispensar a tutela do governo. A tentativa mais bem-sucedida de criação de pelo menos um fórum de discussão até o momento é a da Consecana, conselho consultivo que reúne as principais entidades de fornecedores e usineiros.
Tentando traçar um panorama futuro, podemos dizer que parece inevitável que já nas próximas safras tenhamos um setor sucroalcooleiro muito mais concentrado economicamente, ao mesmo tempo que renovado em termos de tecnologias e processos de produção. Muitas regiões canavieiras do Estado -como a de Piracicaba- deverão reduzir drasticamente sua produção, enquanto outras, como o Centro-Oeste, deverão aumentá-la.
Devido aos problemas ambientais e ao alto custo de produção em determinadas regiões, empresários já se mostram dispostos a mudar as suas usinas para fora do Estado de São Paulo. Isso se deve, em grande parte, à necessidade de mecanizar o corte. No entanto, essa mesma mecanização tem um alto potencial desempregador, e isso é uma ameaça aos trabalhadores. Ao mesmo tempo, a cana queimada está sendo monitorada pelas entidades ambientalistas, pois, mesmo em regiões de alta produtividade e competência empresarial, a cultura da cana-de-açúcar agride o meio ambiente.
Para o consumidor de carro a álcool, pouca coisa deverá mudar. As montadoras, com seus "carros mundiais", perderam o interesse num motor brasileiro diferenciado e só produzirão carros a álcool se tiverem vantagens fiscais consideráveis para isso, coisa que nenhum governo está disposto a bancar a longo prazo. Mesmo assim, os usineiros não querem dar nenhuma garantia de que o combustível álcool hidratado continuará a ser fornecido com regularidade independentemente dos preços da alternativa açúcar. É muito provável que o preço do álcool alcance uma proporção próxima daquela praticada no início do Proálcool (75% do preço da gasolina). E, como foi dito em claro e bom som, se o tal do mercado também melhorar, da parte do açúcar, os produtores poderão voltar a produzir menos álcool, como ocorreu no final dos anos 80. Com isso, a tão propalada autogestão do setor deverá vigorar até a próxima crise, quando o governo será chamado a intervir novamente.
Na verdade, ninguém quer se responsabilizar pelo futuro do carro a álcool. Como foi dito por um dos conferencistas, energia não é pipoca para ficar ao sabor do poder de compradores e vendedores... Afinal, o mercado do carro a álcool está sendo socialmente construído não apenas por quem produz álcool, mas também pelos que cortam cana, pelos que respiram ar poluído e por todos nós que pagamos impostos. A questão fundamental é que o Brasil precisa urgentemente de uma política energética que equacione não apenas o problema atual dos usineiros paulistas, mas também o dos combustíveis derivados do petróleo e do gás natural.


Walter Belik, 44, é professor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e coordenador do NEA (Núcleo de Economia Agrícola).

José Graziano da Silva, 49, é professor do Instituto de Economia da Unicamp.




Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
O carro a álcool é uma solução eficiente?
José Carlos Pinheiros Neto - Sim: A indústria está preparada

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.