São Paulo, segunda-feira, 04 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O sonho acabou?

ALENCAR BURTI

Creio que o sonho não acabou, porque entendo que o ser humano não pode, ou melhor, não deve dele prescindir.
O que normalmente ocorre é que as vertentes dos sonhos seguem para o caminho que leva à sua dissipação, como se uma névoa fora. Mas sempre haverá um jovem, uma criança e, porque não, um jovem de idade avançada que recolhem um pouco dela e a embalam, esperando que o cio da natureza ou das transformações sociais ou mesmo tecnológicas torne a inseminá-las para que possam brotar outros e espetaculares novos sonhos.
As outras vertentes são as realidades que inicialmente abrem seus imensos portões para que adentrem, não raro acompanhados de pompas e circunstâncias, os sonhos duramente perseguidos.
No caso do Lula, pernambucano pobre, migrante que virou metalúrgico e grande líder sindical, com inegável coragem e determinação alicerçadas em princípios e valores -que sua trajetória pela miséria, pobreza e dificuldades consolidou em sua alma sensível de homem solidário-, preocupado com as angústias da sociedade em que vivia e confiante em que poderia e deveria iniciar uma jornada, para mudar aquilo que entendia opressivo, numa época em que o mundo oferecia apenas duas opções: a esquerda, pela ditadura soviética, e a direita, pela democracia americana capitalista.
O curso da história fez com que a União Soviética fosse implodida por aqueles que mais sua filosofia defendiam, os burocratas que deveriam fazer a distribuição de riqueza que Marx e Engels queriam e que seus discípulos tentaram e conseguiram impor, ao custo de milhões de vidas.
Cai o Muro de Berlim, surge uma economia global conduzida pela maior delas, que é a da América do Norte, e seguida pelo G-7, 8 ou 9, como queiram, e o mundo está tendo que com ela conviver (nem sempre por vontade).
Lula, o sindicalista de São Bernardo, já à frente de um partido forte pelas suas convicções e por sua rígida disciplina, cresce e se espalha pelo Brasil e aumenta suas fileiras pelos movimentos dos sem-terra, sem-teto, por intelectuais e religiosos sempre plenos de boas intenções, mas nem sempre convencidos dos avanços e transformações do novo mundo.


O companheiro Lula pode continuar companheiro, mas é presidente do país e, como tal, tem que ser entendido


Entre vitórias e derrotas, chegaram a 2002, e então o PT, por algumas novas lideranças, que evoluíram muito e obtiveram sucesso em sua trajetória, apresentou um novo modelo sem abdicar de seus valores e princípios e, de roupagem nova, apresentou-se à sociedade -principalmente as classes C, D e, mais, a grande maioria da classe média brasileira- e vendeu uma perspectiva de esperança a trabalhadores e micro, pequenos e médios empresários, que imediatamente a compraram, porque o gerente de vendas, o Lula, tinha credibilidade, pela sua história e por inegável coragem e determinação.
Inteligente e sofrido, falou com o coração e sua razão foi bem dirigida, para que não fosse traído pelas angústias de um passado que se tornou importante superar.
Em se mostrando fraterno, sem ódios e com a certeza de que sua hora havia chegado, identificou-se com a grande maioria dos brasileiros que nele acreditaram porque viam seu espelho, mas temiam o PT, com seus nichos de radicalismo e ódio, que ele, Lula, já havia superado e que os resultados das eleições confirmaram.
Agora, minha gente, o companheiro Lula pode continuar companheiro, mas é presidente do país e, como tal, tem que ser entendido, sabendo que suas margens de erro e dúvidas, condicionadas pelo cargo, se estreitam; as pressões serão imensas, internas e externas, locais e internacionais.
Mas nós todos que divergimos dele em alguns pontos temos que dar um tempo para que ele possa ratificar as promessas do candidato e mostrar que o possível será feito, com a urgência que as carências exigem; mas o desejável irá se buscar com paciência, pelo diálogo e sem prepotência, convidando os que amam o Brasil a apresentarem projetos e meios de execução.
Que, num esforço brutal (com os sacrifícios necessários em busca da correção de nossas assimetrias e, principalmente, de uma independência econômica e política), possamos, daqui a quatro anos, sonhando juntos, dizer "este é o Brasil que desejávamos".


Alencar Burti é presidente da Facesp (Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo) e da ACSP (Associação Comercial de São Paulo).


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