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São Paulo, quarta-feira, 05 de março de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Existem cinzas ainda

RIO DE JANEIRO - Na crônica de ontem, lembrei o Cantizano, sapateiro na rua Cabuçu e Adão no carro alegórico dos Fenianos durante os Carnavais dos anos mais antigos do passado. Hoje poderia lembrar o meu primo Torquato, que passava os três dias de Carnaval com uma chupeta na boca, de fraldas e, como aquele folião cantado pelo Ary Barroso, de reco-reco na mão.
Na Quarta-Feira de Cinzas, Torquato de Moraes era a imagem da devastação e da melancolia. De olheiras, a voz rouca, ele achava a vida sem graça e prometia dormir um sono só até o Carnaval seguinte. Dorme agora esse sono sem fim, que dormiremos todos em feitio de cinzas ou nem isso.
Mas não é nele que penso nesta Quarta-Feira de Cinzas. Aliás, não precisava pensar em mais nada desde que vi, no chão de uma igreja em Roma, o epitáfio do cardeal Barberini: aqui jaz o pó, a cinza e o nada.
Não é a primeira vez que lembro esse cardeal e esse epitáfio. Toda Quarta-Feira de Cinzas tenho esse pensamento macabro, que só não me derruba porque logo penso em coisa mais sadia e alegre.
Penso nas quaresmeiras que explodem nas matas vizinhas aqui do Rio, na serra de Petrópolis ou Teresópolis ou mesmo na mata do Sumaré, que termina na imensa pedra do Corcovado, fechando a Lagoa, aqui em frente à minha varanda.
Sempre achei mágicas as folhas roxas que esperam o início da Quaresma para explodir no meio do verde, como se obedecessem ao calendário gregoriano, que faz do roxo a cor litúrgica da Quaresma.
Misturando Quaresma, tempo de cinzas e de penitência, com o Carnaval, tempo de carne e de alegria, relembro um samba de outros tempos: "Existem cinzas ainda no meu coração que o meu primeiro amor deixou, são cinzas de uma paixão, são cinzas e nada mais, que o próprio vento não desfaz".


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