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CARLOS HEITOR CONY
Existem cinzas ainda
RIO DE JANEIRO - Na crônica de ontem, lembrei o Cantizano, sapateiro
na rua Cabuçu e Adão no carro alegórico dos Fenianos durante os Carnavais dos anos mais antigos do passado. Hoje poderia lembrar o meu
primo Torquato, que passava os três
dias de Carnaval com uma chupeta
na boca, de fraldas e, como aquele folião cantado pelo Ary Barroso, de reco-reco na mão.
Na Quarta-Feira de Cinzas, Torquato de Moraes era a imagem da
devastação e da melancolia. De
olheiras, a voz rouca, ele achava a vida sem graça e prometia dormir um
sono só até o Carnaval seguinte. Dorme agora esse sono sem fim, que dormiremos todos em feitio de cinzas ou
nem isso.
Mas não é nele que penso nesta
Quarta-Feira de Cinzas. Aliás, não
precisava pensar em mais nada desde que vi, no chão de uma igreja em
Roma, o epitáfio do cardeal Barberini: aqui jaz o pó, a cinza e o nada.
Não é a primeira vez que lembro esse cardeal e esse epitáfio. Toda Quarta-Feira de Cinzas tenho esse pensamento macabro, que só não me derruba porque logo penso em coisa
mais sadia e alegre.
Penso nas quaresmeiras que explodem nas matas vizinhas aqui do Rio,
na serra de Petrópolis ou Teresópolis
ou mesmo na mata do Sumaré, que
termina na imensa pedra do Corcovado, fechando a Lagoa, aqui em
frente à minha varanda.
Sempre achei mágicas as folhas roxas que esperam o início da Quaresma para explodir no meio do verde,
como se obedecessem ao calendário
gregoriano, que faz do roxo a cor litúrgica da Quaresma.
Misturando Quaresma, tempo de
cinzas e de penitência, com o Carnaval, tempo de carne e de alegria, relembro um samba de outros tempos:
"Existem cinzas ainda no meu coração que o meu primeiro amor deixou, são cinzas de uma paixão, são
cinzas e nada mais, que o próprio
vento não desfaz".
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