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São Paulo, quarta-feira, 05 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Decisão e reformas

DENIS LERRER ROSENFIELD

Decisões implicam interesses contrariados. Não há decisão, muito menos no domínio político, que possa ser consensual, senão pela generalidade com que é apresentada.
Todos estão de acordo com a necessidade das reformas tributária e previdenciária, salvo, evidentemente, naquilo que toca aos seus interesses próprios. Cria-se então uma mística de que, quanto mais abrangentes forem as conversas, maior será o entendimento daí resultante. O acordo, no entanto, não é nada mais do que aparente, pois ele versa sobre palavras, e não sobre o que elas significam.
Se perguntarmos a cada um dos atores dessa cena social e política o que cada um entende concretamente por reformas previdenciária e tributária, as discordâncias aflorarão imediatamente. O ser, já dizia Aristóteles, se diz de múltiplas maneiras. "Mutatis mutandis", o mesmo ocorre com as reformas ora em discussão.
Contudo, se atentarmos mais diretamente para essas reformas, constataremos, primeiramente, que elas não existem, pela simples razão de que não há nenhum projeto neste sentido que tenha sido enviado ao Congresso pelo atual governo. O que mais se aparenta a isso, no caso da reforma previdenciária, é o projeto de lei nš 9, elaborado pelo governo anterior. A rigor, portanto, não há nenhum projeto em discussão.
A situação não deixa de ser bizarra, pois a atual discussão opera no ar, e cada ator ou representante de um setor social diz o que bem entende por reforma, sem nenhum tipo de compromisso. Ou seja, há discussões sobre projetos inexistentes, com o resultado, paradoxal, de que estamos aparentemente avançando nesse processo.
Sempre se pode apresentar o argumento de que essas negociações são preliminares e propiciarão um acordo futuro. Ora, discussões tanto podem fazer avançar um problema quanto barrá-lo, tudo dependendo do debate de questões concretas. E essas questões são as grandes ausentes, pois inevitavelmente implicarão interesses contrariados.
Os diagnósticos referentes à situação da previdência e à necessidade de transformações na esfera tributária já foram feitos, "ad nauseum", pelo governo FHC, sem que este tenha encontrado condições políticas para implementar as mudanças requeridas. E o PT em muito contribuiu para que essas condições não fossem criadas.
Agora que os papéis se inverteram, defronta-se o atual governo com a tarefa de fazer aquilo que considerava desnecessário ou mal avaliado. A sua única novidade foi lançar balões de ensaio, esperando que condições se criem para a realização dessas reformas, como se decisões brotassem naturalmente de discussões, sem maiores contrariedades. O recurso utilizado pelo atual governo foi, então, criar um Conselho Econômico e Social, cuja função seria chegar a um grande pacto social.


Não há a necessidade de nenhum pacto político, pois a candidatura Lula contou com o apoio dos mais diferentes setores


Ora, o Brasil não enfrentou nenhum problema de transição do governo FHC ao governo Lula, as instituições republicanas tendo funcionado perfeitamente, num processo único na história do país. Logo, não há a necessidade de nenhum pacto político, pois a própria candidatura Lula contou com o apoio dos mais diferentes setores e classes sociais, não tendo sido uma candidatura exclusiva dos trabalhadores. Assim, o novo governo já compareceu como fruto de uma espécie de consenso social.
Por outro lado, dizer que é mais democrático discutir no conselho criado é apenas um uso retórico sem base argumentativa, pois os seus membros foram escolhidos por cooptação, alguns sendo socialmente representativos, outros não, obedecendo a interesses partidários ou pessoais. Em todo caso, não houve nenhuma eleição que lhes conferisse representatividade.
Ora, a instituição republicana que tem a representatividade -melhor, a função- de discutir e aprovar reformas é o Poder Legislativo, que está ficando à margem desse processo. Em vez de facilitar a implementação das reformas, o novo conselho pode vir a ser um empecilho para a sua aprovação, considerando que os parlamentares venham a entender esse processo como uma ingerência em suas atribuições específicas, o que ocorre realmente.
Vem, então, a pergunta: Por que o PT está enveredando por esse caminho, que pode se revelar espinhoso? Talvez a resposta se situe na ausência de uma proposta concreta de reforma, procurando o governo ganhar tempo, avaliando a correlação de forças em jogo.
Entretanto a sua razão de ser se encontraria em outro nível, qual seja, a tentação petista de controlar, de fora, o processo legislativo. A sua experiência administrativa anterior é, neste sentido, reveladora, ao instituir o Orçamento Participativo. Em sua implementação, ele foi uma tentativa de "curto-circuitar" o processo legislativo, impondo, do exterior, uma decisão tomada, no final das contas, nas instâncias partidário-governamentais. Caberia ao Congresso, então, referendar algo decidido fora dos seus recintos.
Se o Conselho Econômico Social seguir essa linha, poderemos ter uma séria zona de atrito nas instituições republicanas. Curtos-circuitos podem causar incêndios.

Denis Lerrer Rosenfield, 52, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É editor da revista "Filosofia Política" e autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática, 1995), entre outros livros.
denisrosenfield@terra.com.br


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