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São Paulo, quarta-feira, 05 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lembremos Mário Covas

ANDRÉ FRANCO MONTORO FILHO

Há dois anos São Paulo e o Brasil perdiam um dos seus maiores estadistas. Lembrar Mário Covas hoje, além da justiça em homenagear um grande líder de nossos tempos, continua a ser importante como referência para os rumos de nosso país.
O governo Lula acaba de, pela segunda vez em menos de 50 dias de governo, aumentar a taxa de juros dos títulos públicos, a Selic. A justificativa para a elevação foi a trajetória, não bem comportada, da inflação no Brasil. Afirmou-se que, com a continuidade dessa trajetória, a inflação superaria a meta de 8,5% fixada para este ano.
Essa decisão foi recebida por críticas de diversos setores, se bem que alguns a consideraram necessária e correta. É certo que existe, que voltou, a ameaça de descontrole inflacionário e que os índices de preços divulgados estão acima do esperado. É certo também que não podemos regredir e voltar aos tempos da superinflação brasileira. Não podemos permitir a volta desse descontrole.
Política monetária restritiva, ou seja, aumento de taxas de juros, é um instrumento que se, por um lado, tem efeitos positivos para o combate à inflação, pois reduz a demanda agregada, por outro lado -e exatamente por reduzir a demanda agregada- tem efeitos perversos sobre o emprego, sobre a renda e sobre o crescimento. Lembrando a importância que foi dada ao emprego e ao crescimento na campanha eleitoral, a questão que se coloca é: Será este o único remédio disponível?
Sem aprofundar a teoria econômica, sabe-se que os principais instrumentos à disposição do governo para calibrar a demanda agregada, e assim estabilizar renda, emprego e preços, são a política monetária e a política fiscal. Em grande parte, os elevados juros que vigoram no Brasil têm muito a ver com o frágil "equilíbrio" fiscal do governo federal, seus déficits potenciais e o receio de um crescimento explosivo de sua dívida, ou da relação entre dívida e PIB.
Convém lembrar que o chamado superávit primário exclui o pagamento de juros e o refinanciamento da dívida pública, que são também obrigações financeiras do governo federal. Se incluirmos apenas o pagamento de juros e encargos, os badalados 2,45% de superávit se transformam em um déficit (necessidade de financiamento) de mais de 5%. E ainda falta a amortização ou o refinanciamento da dívida pública. Em suma, a situação fiscal federal não é nada confortável.
Esses fatos fazem-me lembrar a administração de Mário Covas no governo do Estado de São Paulo.
Quando Covas assumiu o governo, em 1995, a situação financeira do Estado de São Paulo também não era, para dizer o mínimo, nem um pouco confortável. Mas ele teve a visão de estadista e a coragem cívica de "meter a mão na massa" e comandou, diretamente, um enorme esforço de ajuste fiscal. Não teve medo de contrariar fortes interesses, de tomar medidas impopulares. E fez isso desde o primeiro dia de seu governo, não esmorecendo com as dificuldades, críticas e incompreensões.
Tendo tido a honra de, como secretário de Economia e Planejamento, ter participado desse grande esforço, é meu dever frisar que Covas teve, na época, em Geraldo Alckmin, um grande colaborador, que, agora como governador, mantém a austeridade fiscal em São Paulo.


Esse ajuste fiscal deveria, como na gestão de Covas, ter se iniciado no primeiro dia do governo


O Brasil está precisando de um choque fiscal no estilo Mário Covas. Só com um efetivo ajuste fiscal será possível, simultaneamente, combater a inflação e reduzir os juros. É quase impossível, na atual situação fiscal brasileira, confiar apenas na política monetária e no aumento de juros para controlar a inflação. Enquanto o lado fiscal continuar frágil, teremos juros cada vez maiores e cada vez com menos efeitos sobre preços e mais efeitos negativos sobre a renda e o emprego.
É fácil ver por quê. O governo, gastando mais do que arrecada -incluindo juros e amortizações-, tem apenas duas possibilidades para financiar esse déficit: ou emite moeda, gerando mais pressão inflacionária, ou emite títulos, aumentando as taxas de juros. Não há ministro da Fazenda ou presidente do Banco Central, por mais competente e imaginativo que possa ser, que consiga reverter tal situação.
Esse ajuste fiscal deveria, como na gestão de Covas, ter se iniciado no primeiro dia do governo. Para poder enfrentar as resistências que certamente virão, é preciso usar o cacife eleitoral conseguido nas urnas. Já perdemos quase dois meses, mas ainda é possível recuperar esse tempo. A popularidade do presidente continua bastante alta e a realidade tem mostrado a premência do ajuste fiscal.
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em homenagem aos dois anos da morte de Mário Covas, assuma a liderança e promova o choque fiscal de que o Brasil precisa para se libertar da verdadeira armadilha que foi criada com a política de juros altos -e põe altos nisso.

André Franco Montoro Filho, 59, economista, doutor pela Universidade Yale (EUA), é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP. Foi secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo (gestões Mário Covas e Geraldo Alckmin).


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