São Paulo, sábado, 05 de abril de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil deveria acabar com as medidas provisórias?

NÃO

A Lei ou a lei?

ANDRÉ RAMOS TAVARES

A MEDIDA provisória plasmada constitucionalmente não faculta ao presidente da República governar diretamente, à revelia ou mesmo contra o próprio Congresso Nacional. Trata-se de uma espécie de lei, sim, mas com "l" minúsculo; é precária, não deriva do Parlamento eleito, só pode ser editada nos casos de relevância e urgência e dentro dos demais contornos constitucionais.
Contudo, é preciso admitir o atual (ab)uso pelo presidente, que empurra o Congresso -que é (ou deveria ser) o legítimo proponente de Lei- para uma crise existencial.
Percebeu-se agora que, por meio das medidas provisórias, o presidente acaba por trancar a pauta do Congresso, inviabilizando o exercício regular da função legislativa primária.
Curiosamente, essa situação surgiu após a resposta revisora (de 2001) aos abusos ocorridos até então, mas se mostrou uma solução medíocre na prática rotineira dos Poderes, pois os abusos se aprimoraram e se perpetuaram. Medidas provisórias sobre questões secundárias e irrelevantes, como a criação de TV pública e a transformação de secretaria em ministério para atender a interesses pessoais, bem demonstram o desvirtuamento (em curso) do modelo.
A inversão do tema -suspender o Congresso e permitir que toda legislação advenha do presidente- é inconcebível. Isso só ocorreu em períodos sombrios de nossa história. A verdade, porém, é que fazemos pequenas concessões diariamente. O presidente, mesmo sem maioria no Congresso, determina a pauta deste e até suspende suas atividades como decorrência da recorrente utilização de medidas provisórias.
Como alternativa à falta de uma base aliada coesa no Congresso, o presidente legisla pessoalmente. Ao fazê-lo, cria-se um círculo vicioso, pois o Congresso submerge ainda mais em sua inércia, atado pelo presidente, gerando novas necessidades que, por isso, vão ganhando foros de urgência.
Chegou-se tão longe no uso abusivo das MPs que a proposta de seu banimento cabal era a única saída (política) digna a ser apresentada por um Parlamento refém. Mas a suspeita de que seja mera exortação ao impossível está consagrada no senso comum de que situações críticas realmente demandam medidas excepcionais.
Do contrário, o país, sem instrumentos para fazer frente a esses momentos, excederia o abuso (atual) para curvar-se ao arbítrio absoluto da falta de parâmetros jurídicos. Nem se invoque a imaginária "separação de Poderes", porque, rigorosamente, uma separação absoluta nunca existiu nem é desejável.
Se é conveniente que o Congresso, por seu pluralismo (forma colegiada e múltiplas posições ideológicas) e sua legitimidade, priorize a função legislativa, nem por isso se pode concluir pela necessidade de extirpar mecanismos excepcionais. Uma resposta imediata a situações críticas só pode ser unipessoal. E a ampla representatividade que colhe nas urnas remete, aqui, ao chefe de governo como o titular mais indicado dessa função.
O problema está na cultura jurídica e no amadurecimento das instituições democráticas. O sentimento de perplexidade que experimentamos é só um ícone da falta de maturidade.
Nesse contexto, enquanto houver um instituto que permita ao presidente "legislar" diretamente, ainda que com o rótulo de legislação "provisória", estará aberta a porta infernal da tentação, por melhor que sejam as salvaguardas construídas pela inteligência do Parlamento.
Só que, mantida fora de seu eixo natural, a medida provisória destoa do regime constitucional democrático em vigor, caracterizando a "fraude constitucional", quer dizer, o envergamento de institutos aos desígnios (muitos não confessáveis publicamente) das autoridades de plantão.
Assistimos hoje a uma penalização do Congresso e uma usurpação de suas prioridades, o que conduz a um desequilíbrio entre os Poderes. Certamente não é o modelo da Constituição de 1988. Uma conscientização que corrija os desvios perpetrados nos últimos tempos será muito bem recebida pela democracia.


ANDRÉ RAMOS TAVARES , livre-docente em direito constitucional pela USP, professor da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e do Mackenzie, é diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais. É autor de "Curso de Direito Constitucional".

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