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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Brasil deveria acabar com as medidas provisórias?
NÃO
A Lei ou a lei?
ANDRÉ RAMOS TAVARES
A MEDIDA provisória plasmada
constitucionalmente não faculta ao presidente da República governar diretamente, à revelia
ou mesmo contra o próprio Congresso Nacional. Trata-se de uma espécie
de lei, sim, mas com "l" minúsculo; é
precária, não deriva do Parlamento
eleito, só pode ser editada nos casos
de relevância e urgência e dentro dos
demais contornos constitucionais.
Contudo, é preciso admitir o atual
(ab)uso pelo presidente, que empurra
o Congresso -que é (ou deveria ser) o
legítimo proponente de Lei- para
uma crise existencial.
Percebeu-se agora que, por meio
das medidas provisórias, o presidente
acaba por trancar a pauta do Congresso, inviabilizando o exercício regular
da função legislativa primária.
Curiosamente, essa situação surgiu
após a resposta revisora (de 2001) aos
abusos ocorridos até então, mas se
mostrou uma solução medíocre na
prática rotineira dos Poderes, pois os
abusos se aprimoraram e se perpetuaram. Medidas provisórias sobre
questões secundárias e irrelevantes,
como a criação de TV pública e a
transformação de secretaria em ministério para atender a interesses
pessoais, bem demonstram o desvirtuamento (em curso) do modelo.
A inversão do tema -suspender o
Congresso e permitir que toda legislação advenha do presidente- é inconcebível. Isso só ocorreu em períodos sombrios de nossa história.
A verdade, porém, é que fazemos
pequenas concessões diariamente. O
presidente, mesmo sem maioria no
Congresso, determina a pauta deste e
até suspende suas atividades como
decorrência da recorrente utilização
de medidas provisórias.
Como alternativa à falta de uma base aliada coesa no Congresso, o presidente legisla pessoalmente. Ao fazê-lo, cria-se um círculo vicioso, pois o
Congresso submerge ainda mais em
sua inércia, atado pelo presidente, gerando novas necessidades que, por isso, vão ganhando foros de urgência.
Chegou-se tão longe no uso abusivo
das MPs que a proposta de seu banimento cabal era a única saída (política) digna a ser apresentada por um
Parlamento refém. Mas a suspeita de
que seja mera exortação ao impossível está consagrada no senso comum
de que situações críticas realmente
demandam medidas excepcionais.
Do contrário, o país, sem instrumentos para fazer frente a esses momentos, excederia o abuso (atual) para curvar-se ao arbítrio absoluto da
falta de parâmetros jurídicos.
Nem se invoque a imaginária "separação de Poderes", porque, rigorosamente, uma separação absoluta
nunca existiu nem é desejável.
Se é conveniente que o Congresso,
por seu pluralismo (forma colegiada e
múltiplas posições ideológicas) e sua
legitimidade, priorize a função legislativa, nem por isso se pode concluir
pela necessidade de extirpar mecanismos excepcionais. Uma resposta
imediata a situações críticas só pode
ser unipessoal. E a ampla representatividade que colhe nas urnas remete,
aqui, ao chefe de governo como o titular mais indicado dessa função.
O problema está na cultura jurídica
e no amadurecimento das instituições democráticas. O sentimento de
perplexidade que experimentamos é
só um ícone da falta de maturidade.
Nesse contexto, enquanto houver
um instituto que permita ao presidente "legislar" diretamente, ainda
que com o rótulo de legislação "provisória", estará aberta a porta infernal
da tentação, por melhor que sejam as
salvaguardas construídas pela inteligência do Parlamento.
Só que, mantida fora de seu eixo natural, a medida provisória destoa do
regime constitucional democrático
em vigor, caracterizando a "fraude
constitucional", quer dizer, o envergamento de institutos aos desígnios
(muitos não confessáveis publicamente) das autoridades de plantão.
Assistimos hoje a uma penalização
do Congresso e uma usurpação de
suas prioridades, o que conduz a um
desequilíbrio entre os Poderes. Certamente não é o modelo da Constituição de 1988. Uma conscientização
que corrija os desvios perpetrados
nos últimos tempos será muito bem
recebida pela democracia.
ANDRÉ RAMOS TAVARES , livre-docente em direito
constitucional pela USP, professor da PUC-SP (Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo) e do Mackenzie, é diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais. É autor de "Curso de Direito Constitucional".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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