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O Brasil deveria acabar com as medidas provisórias?
SIM
Em proveito da cidadania
ROBERTO ROMANO
AS FORMAS democráticas ainda
não se firmaram no Brasil. A
prudência exige cautela diante
de um corpo institucional que adquiriu, por força de sua gênese e história,
determinados costumes. A crônica de
nosso Estado narra uma saga pouco
republicana.
Ainda ontem, o futuro presidente
do STF alertou o país sobre o caos legislativo. Boa parte da massa caótica
se deve à promiscuidade entre os Poderes. Dos costumes deletérios trazidos pelas ditaduras Vargas e militar,
temos o perene reforço do Executivo
em prejuízo do Estado.
O Poder Moderador, um anacronismo se forem considerados os modelos estatais nascidos das revoluções
democráticas modernas (Inglaterra,
Estados Unidos, França), marcou a irresponsabilidade governante. Como
controlava os demais Poderes, a vontade do imperador definia as leis.
Em contexto assim, não é de admirar que medidas excepcionais sejam
prescritas na Carta de 1824 com as
desculpas de "salus populi", invasão
inimiga etc. O soberano domina a exceção, conforme seu arbítrio.
Na república, prerrogativas do monarca passam silenciosamente ao
presidente. As sucessivas Constituições marcam a responsabilidade presidencial e dos auxiliares. Mas exigir
prestações de contas dos governantes
é quase impossível. Em vez das providências excepcionais anteriores, surge o decreto-lei já no frontão do "novo" regime, sob patrocínio do presidente Deodoro.
De 1937 até 1945, Vargas governa
com tal criatura, nutrida com leite da
Constituição polaca. A ditadura militar acrescentou os atos institucionais.
Tempo de cassações de mandatos
parlamentares, de juízes (inclusive no
STF), tempo de controle absoluto nas
mãos dos que se "legitimaram a si
mesmos" (AI-1), com a censura, as
torturas, as violações dos direitos.
É vezo comum dos governantes autoritários, de Napoleão aos nossos
dias, açambarcar a tarefa legislativa
em proveito próprio. Ditadores brasileiros, longe de inovar, copiaram letra
a letra os que, na modernidade, foram
inimigos do Legislativo e Judiciário
autônomos. Mussolini, Hitler e outros exigiram o "direito" de legislar.
Em 1933, o Parlamento dá a Hitler
plenos poderes, autorização cujo título folclórico é Lei sobre a Supressão
da Miséria do Povo e do Reich. Tal lei
não suprimiu a Constituição de Weimar, suspendeu-a "provisoriamente", deu ao governo o direito de legislar fora das normas constitucionais,
sem ratificação de deputados.
Antes de dizerem que comparo coisas diversas, peço a paciente leitura
de um trecho de Hitler: "A Constituição só fixa o terreno onde a luta se desenvolve, não o seu fim. Entramos nas
instituições previstas pela lei e faremos assim de nosso partido o fator
decisivo. Mas, quando tivermos constitucionalmente tal direito, daremos
ao Estado a forma que julgamos boa"
(citado por E. Calic: "Hitler sans Masque. Entretiens Hitler- Breiting").
Quando o Executivo se arroga o direito de legislar, ele não se contenta
com a parceria (o casamento, dizem
alguns) com o Legislativo sufocado.
Sua meta é reduzir o poder estatal ao
estatuto de mero subsidiário.
Todos os ditadores, em potência ou
em ato, trazem no peito o que Hitler
confessou a Breiting. Não conseguem
plenamente seu alvo, mas suas tentativas trazem misérias para países inteiros. Misérias que poderiam ser pelo menos atenuadas em tempo certo.
Quando se fala em "abuso" das medidas provisórias, o certo seria nomear o despotismo do Executivo, a
busca de sufocar os demais Poderes e
lhes impor o seu tacão. Preconizar a
"disciplina" das referidas medidas é
pedir à fera leonina que, gentilmente,
ceda sua parte.
Medidas provisórias são necessárias? Talvez. Mas a prudência recomenda que, antes de tentar impor limites ao seu abuso, elas sejam abolidas. Assim, durante certo tempo, o
Executivo precisará usar o rito normal para as questões normais. E não
tentará maquiar medidas que o favorecem com o disfarce da emergência.
Não assistimos apenas ao abuso das
mencionadas medidas. Assistimos à
crise geral do Estado brasileiro. Elas
são parte do cenário. E este, como diz
o ministro do STF, é caótico. Suprimir por algum tempo as medidas provisórias pode permitir a cada um dos Poderes o retorno ao seu múnus próprio. Em proveito da cidadania.
ROBERTO ROMANO 61, filósofo, é professor titular de
ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII".
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